Os riscos que espreitam a tradução do riso

Pode haver algo mais difícil que traduzir poesia?
01/02/2004

Pode haver algo mais difícil que traduzir poesia? Ou o que reuniria, de forma ainda mais perfeita que na poesia, as idiossincrasias de uma língua e as indistinguíveis nuanças do espectro cultural nacional? A piada. Essa forma às vezes tão vulgar de usar a língua. De modo mais amplo, o humor. Que haveria de mais difícil para traduzir?

No humor, como na poesia, não raro é preciso simplesmente esquecer o diz o original. Esquecer as palavras e partir da tábua rasa para tentar recriar um efeito dos mais difíceis: o riso, senão a risada. E olhem outra nuança sutil: chegar ao fino de distinguir o sorriso, o riso e a risada — pra não falar da mais estrepitosa gargalhada. A diferença entre provocar um sorriso irônico, um riso espontâneo ou uma frouxa risada.

Quando a piada se faz com a matéria da própria linguagem, a tradução toma, necessariamente, caminho radical quando se quer, de fato, traduzir alguma coisa. Como traduzir uma piada em que a graça está na semelhança do som de duas palavras, como num trocadilho? Ou como traduzir um chiste em que o riso nasce do choque entre duas palavras, que formam outra e provocam curioso duplo sentido?

É pior, realmente pior que traduzir poesia. Exige uma língua bem aparelhada, e um tradutor, mais que bem aparelhado, aguçadamente preparado para perceber as sutilezas do humor. Sutilezas que só se revelam, por vezes, se observadas atentamente contra o pano de fundo furta-cor da cultura local.

A saída é sempre a criação, mas na tradução da piada a criação implica exageros de inventividade. Implica mudanças, “mínimas ou mesmo drásticas”, como diria o professor John Robert Schmitz em texto que examina alguns aspectos dessa tarefa espinhosa. Em casos extremos, vale até trocar a piada por outra, que se crê poder provocar a mesma intensidade de riso.

A montagem de um texto humorístico — quando piada, geralmente texto curto e coloquial — extrai o melhor do tradutor-humorista. Como a poesia tira o sangue do tradutor-poeta. A piada muitas vezes se faz de lacunas, de espaços vazios que o ouvinte, ou leitor, vai preenchendo tentativamente. O contador, ou escritor, num jogo em que cada lado sabe exatamente seu papel, busca induzir o ouvinte ao engano. O desfecho é a surpresa — o oposto, às vezes, do que o leitor foi levado a pensar. Eis o mistério do humor.

O tradutor, como faria o ouvinte, procura preencher ele mesmo as lacunas, para depois, lapidando o texto, novamente esvaziá-las. Burilada a frase, restam as palavras essenciais — e o oco entre elas, a razão do riso. É então que o humor que se baseia no que não se diz, mas no que mina do espaço entre as letras.

A explicitação tosca é a maior inimiga do humor, como, na tradução, excessos de aclaramento tendem a produzir um texto desprovido do brilho do original. Na tradução do humor, esconder o jogo — até o último minuto — é fundamental. E isso não vale apenas para a tradução de piadas ou textos francamente humorísticos. Na literatura, o humor se acha disperso, condensando-se mais visivelmente aqui e ali. Cabe à perspicácia do tradutor identificá-lo e recriá-lo de maneira competente.

O grande risco que representa a tradução do riso não é o de errar a dose, que tem que ser bem medida e pesada (o sorriso, o riso, a risada), mas o de exigir um vôo mais alto da criação.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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