Em O trovador, de Rodrigo Garcia Lopes, vemos um tradutor no papel de protagonista. Já escrevi em outras ocasiões, neste mesmo espaço, sobre tradutores como protagonistas em romances. Lembro-me dos livros A tradutora, de Cristovão Tezza, e Travesuras de la niña mala, de Mario Vargas Llosa.
O trovador não é uma obra sobre tradução, claro. Tampouco há grandes reflexões sobre o ofício tradutório. Ainda assim, a tradução permeia o romance de fora a fora.
No livro de Garcia Lopes, o tradutor é o escocês Adam Blake, funcionário da companhia britânica de colonização de terras Paraná Plantations. A tradução que nos interessa é a de uma antiga trova escrita em provençal.
Blake vê na velha trova a chave do mistério que tenta decifrar — uma série de assassinatos na Londrina da década de 1930. Blake revira o texto do avesso. Pesquisa. Visita bibliotecas. Consulta especialistas. Demora-se na reflexão, em meio às desventuras do romance. Busca o “sentido misterioso” dos versos provençais.
O protagonista, como todo tradutor, enfrenta os obstáculos clássicos que qualquer texto impõe àquele que quer decifrá-lo, incluindo, entre outros, a distância temporal e a ausência do autor. Em entrevista com o padre Helmut Braun, um dos especialistas, Blake manifesta sua aflição — sentimento talvez comum a todo tradutor: “Há algumas palavras que não entendo. Preciso saber mais sobre a vida desse trovador. Queria mergulhar no universo e no tempo dele, para ser fiel a seu espírito e melhor traduzi-lo”.
É a busca da fidelidade por meio do estudo não apenas do texto, mas do autor e de sua circunstância. Blake fazia um trabalho louvável, digno dos melhores da raça.
O padre, por sua vez, confessa ter suas próprias teorias sobre tradução: “acredito que não há nada que não seja traduzível. Esse é meu credo. Minha primeira paixão foi a filologia, os meandros e caminhos que percorrem os sentidos de uma palavra, a história de sua existência através dos tempos”.
Nota-se a complementação entre o esforço de Blake no sentido de compreender o trovador e seu tempo, de um lado; e, de outro, o conselho do padre sobre como enfrentar as palavras, o texto e seus sentidos esquivos.
A tradução tem seus mistérios. Também tem seus meandros e suas exigências em termos de denodo e tarimba, entre outras qualidades.
Adam Blake era obstinado. A trova era difícil. Nela havia uma palavra de sentido especialmente obscuro, naquele contexto: noigandres — “palavra considerada o locus classicus para a intradutibilidade da canção dos trovadores”. Não apenas seu sentido era obscuro. Sua grafia cambiante lhe enevoava a própria forma: “a palavra aparece em pelo menos sete variantes diferentes”.
Blake trabalha duro. Monta e desmonta a palavra. Sonda seu sentido mais profundo: “anagramas mais perfeitos são aqueles que funcionam como tradução, comentário ou reflexão sobre a palavra escolhida. É um jogo em que a palavra faz gerar cópias dela mesma, mas em novas combinações e sentidos”.
São muitas as combinações possíveis. E cada uma delas gera nova profusão de sentidos. Vicissitudes da tradução, empecilhos para todo tradutor. O texto nem sempre é feito para ser fácil.
A pesquisa é longa, mas frutífera. Blake encontra enfim uma boa pista. Acha a chave. Bastaram olhos e cérebro para ler e traduzir.