O tradutor como protagonista

Romance de Vargas Llosa tem um tradutor no centro da narrativa
Mario Vargas Llosa, autor de “Travesuras de la niña mala”
05/02/2015

Tradutor não tem vocação para protagonista, nem mesmo quando se trata de seus próprios textos. Mario Vargas Llosa, contudo, mesmo sem ignorar esse fato tão óbvio, fez de um intérprete/tradutor o personagem central do romance Travesuras de la niña mala. A escolha não foi fortuita, certamente, pois o Nobel de Literatura foi ele mesmo tradutor, na mesma Unesco e na mesma Paris de Ricardo Somocurcio.

São bastante óbvios os traços biográficos do romance. Além de tradutores, ambos — Vargas Llosa e Somocurcio — viveram no bairro limenho de Miraflores e compartilhavam o sonho de estabelecer-se na Cidade Luz. Porém, Somocurcio e Vargas Llosa revelam níveis de ambição bastante distintos. Enquanto o protagonista de Travesuras se contentou em permanecer tradutor por toda a vida — contanto que continuasse em Paris —, Varguitas (vide La tía Julia y el escribidor) exerceu a tradução como ganha-pão temporário, enquanto se preparava para viver da literatura.

O fato é que o tradutor, em Travesuras, é, sim, o grande protagonista. Trata-se, basicamente, de um romance sobre um grande amor — ou sobre grandes paixões. A história de um tradutor romântico, vítima de sua grande paixão adolescente. Duas paixões principais: a “niña mala” e Paris. Paixões que determinaram claramente seu destino. Uma terceira paixão, embora não tão clara quanto as duas primeiras, se esgueira pelas margens do livro: a própria tradução, a qual, mais que mero pano de fundo, é elemento que permeia todo o livro.

Os momentos de recolhimento da paixão pela “niña mala” são aqueles de grande dedicação ao ofício tradutório: o estudo das línguas e a prática mesma da tradução. São os momentos em que essa terceira paixão aparece com toda a sua força.

Não faltam, no livro, reflexões sobre o ofício tradutório. Ricardo Somocurcio, quando evolui de tradutor (de textos escritos) a intérprete simultâneo, rotula o “salto” de “êxito medíocre” — qualificação significativa para ambas as profissões.

Mas houve outro salto, valorado com mais otimismo pelo protagonista/narrador do romance: a passagem de tradutor/intérprete de textos burocráticos a tradutor de literatura. Tal movimento foi celebrado pelo personagem com uma frase expressiva: “como tradutor literário, me senti menos fantasmal que como intérprete”.

Abro parêntese para mencionar que a comparação do tradutor/intérprete a um fantasma é recorrente no livro. Mais uma metáfora que procura indicar a ocultação do tradutor detrás da obra original.

Somocurcio, em frases talhadas pela longa experiência (por sua vez fundada na vivência do próprio Vargas Llosa), procurou delimitar, na tradução literária, um claro espaço para a criação: “Tinha que tomar decisões, explorar o espanhol em busca de matizes e cadências que correspondessem às sutilezas e velaturas semânticas — a maravilhosa arte da alusão e da evasão da prosa de Tchecov — e também às suntuosidades retóricas da língua literária russa. Um verdadeiro prazer”.

A menção a “tomar decisões” é crucial, aqui, para entender a diferenciação que o narrador de Vargas Llosa faz entre a tradução técnica/burocrática e a literária.

A tradução literária, embora não lhe proporcionasse a mesma renda que a interpretação simultânea e até que as traduções de textos burocráticos, certamente dava ao protagonista de Travesuras gratificação mais verdadeira. E melhor: lhe dava espaço para criar.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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