O tradutor em busca de nitidez

Traduzir não deixa, também, de ser definir com mais nitidez. Ir além da mera leitura, que, às vezes, compreende de maneira rasante apenas, sem mergulhar nas torturantes especificidades do texto
01/03/2015

Traduzir não deixa, também, de ser definir com mais nitidez. Ir além da mera leitura, que, às vezes, compreende de maneira rasante apenas, sem mergulhar nas torturantes especificidades do texto. Buscar a nitidez mais pura, contando ou não com as descargas de inspiração que mediaram a escritura original. Esse mergulho — mais que o mero voo rasante — vale toda uma vida dedicada à tradução.

Independer das lufadas de alumbramento — doce maldição que acossa o autor mais iluminado. Apostar nas luzes do suor, nos delírios de invenção que propicia o limite do esgotamento mental. Fruir o esplendor criativo que deriva da resistência aos assaltos do pavor do fracasso. Pouca coisa essa?

Laminar o texto, limpando camada a camada, em busca da clareza mais neutra. O sentido original, enfim? Refilar as bordas do papel, varrer para longe os fanicos, as sobras. Roçar, que seja ao menos roçar, o núcleo quase anassêmico do qual deriva todo significado possível. Tocar com a precisão da sonda mais sensível. Sentir com nitidez cada mínimo tom no som de todas as notas.

Superar, nem que por átimo mais curto, a irritante intermitência dos sentidos. Como traduzir essa coisa tão semovente, tão fluida, que não se deixa apreender senão por mínimos instantes? Como conter essa intermitência que não me deixa descansar sobre um sentido sólido?

Uma forma de entender esse enigma é, talvez, aceitar que o significado é sempre o sujeito, nunca um objeto: sempre algo construído, a cada breve instante, pelo sujeito, o leitor, o tradutor. A velha história de que, para fazer sentido, é preciso contar pelo menos dois.

Ler assim a construção do texto não parece aliviar o suplício do tradutor, esmagado entre o peso da tradição e as demandas do texto novo. Como, enfim, agradar gregos e troianos, autores e editores, público e crítica?

Mas mais que nitidez, há que buscar intensidade. Sopro forte sobre a superfície do texto. A crispação da escrita, em tons que oscilam e provocam o efeito liquidamente literário. A palavra ríspida, que arranha ouvidos e arranca sentidos. Isso há que saber dosar. Instilar veemência no texto. Pelo menos na mesma medida que se encontra no original. A dose certa de dramaticidade, sem transitar para o campo do exagero. Como captar aquela fugacidade lindamente atroz de uma luz de fim de tarde. Fugir do texto alarve e não transigir com a incúria.

Tampouco deixar mal morto o original. Acabá-lo bem acabado. Afogá-lo de vez. Não permitir que o texto primeiro perdure além-tradução, como que assombrando o novo texto quase à tona do papel.

Evitar a escritura arrevesada, inquinada, fruto verde da pressa e do desleixo. Evitar a palavra murcha, ressequida, da qual parece nem mais possível saltar a fagulha do sentido. Não permitir que as palavras como grudem umas nas outras, num triste espetáculo de dissolução de conteúdo. Texto esconso, não pronto, nem sequer legível — pelo menos não literariamente.

Buscar além da nitidez, o foco mais claro, o texto mais teso. Escritura como pele plena de turgor, esticada pela vivacidade que quer se expressar: a tônica de toda tradução.

Sentidos que se levantam do texto, naturalmente, na boa tradução. A tenaz perseguição de toda ramificação de significados. A boa escolha das palavras que retêm, do original, a memória de velhos eficientes conceitos. Prenhes que nunca deixam de ser. Expressividade pura que nunca deixa de ter. Nitidez.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho