Traduzir também é projetar o sentido para além de sua base espacial e temporal. Apanhar o texto do papel, contido em certo intervalo de tempo, e lançá-lo no ambiente inóspito — mas talvez também ávido por novidade — de nova língua, novos leitores. Uma aposta no significado futuro, algo que se deve antever, consolidar e reescrever.
Retirar do texto o tutano, aquilo que se pode projetar em novo texto, deixando para trás — com dose não pequena de remordimento — os restos de sentido que não se vergam à translação. Sempre sobrarão restos, além das facetas fugidias de um impenetrável núcleo anassêmico. Mas o que se projeta já será suficiente para sustentar o novo texto e, certamente, contentar a imensa maioria dos leitores. Ou não?
Ler no texto o que se procura. Partindo, sempre, de pressupostos e preconceitos que fazem a base de qualquer leitura. Algo que vai além do contexto, ao incluir elemento intrinsecamente pessoal — a bagagem cultural de cada um.
Projetar a ressurreição do texto primeiro — única chance de sobrevivência do original, como tantas vezes já se disse. Conceber, na nova língua, redação com alta capacidade de transmissão de conhecimentos. Texto saturado de informação, mas também perfeitamente permeável, para quem tiver sentidos atentos.
Sentir as correrias que sacodem o substrato do texto. Movimentos de sentidos instáveis à procura de sólida moldagem, mesmo que temporária. Ou, por outro ângulo, corre-corre de significados vibrantes, arredios a toda tentativa de fixação.
Captar também os sentidos que se formam no espaço exterior às palavras, breve espaço que medeia entre papel/tela e retina. Breve espaço onde se digladiam definições concorrentes, sem pacificação que não seja a de um contexto matizado pela inevitável idiossincrasia de cada tradutor (esta, uma das raízes das tantas diferenças entre traduções feitas por conterrâneos contemporâneos).
Ao tradutor cabe, então, como que tolher o texto, talhando-o à sua semelhança. Cortar a pulsão pela linha cada vez mais longa, com tendência cada vez maior ao abstruso. Conter excessos de entusiasmo — arrefecer a irrequietude vazada em jorros erráticos de criatividade. Traduzir como ato de controle da proliferação de significados. O tradutor agraciado com resplandecente nimbo de santidade; a seus pés, a massa agradecida de leitores.
Ou caberia pinçar certos fios de sentidos, dando à escritura ares de fina costura? De fato, coser sentidos escolhidos em tecido novo, armando linha a linha o texto traduzido. Trabalho de paciente e sofisticado artesão.
Ao tradutor resta alcançar êxito no projeto de arriscar texto novo, sempre se introduzindo — ele mesmo, tradutor — como ingrediente a mais, elemento surpresa. Melíflua arte essa, de projetar o contentamento de tantos ouvidos alheios — além dos seus próprios, já tão exigentes.
Arte que também implica certo sardonismo, por desde o início saber-se impraticável. A consciência do impraticável, do impossível: sentimento que dispara a mola da impotência, mola que projeta o gesto teatral de desespero de todo tradutor. O saber-se herdeiro de uma sina de artista, daquele que tem por ofício andar na corda bamba: de um lado, a irrelevância; de outro, a crítica mais virulenta. Dois fundos precipícios. À frente e além, não o paraíso, mas, quem sabe, ao menos o mero consolo de uma consciência tranquila. Suficiente?