O preconceito contra a tradução, e a maneira de rompê-lo

Não é incomum ouvir, ou ler, por aí a recomendação de que se leia uma obra qualquer na língua original
01/04/2004

Não é incomum ouvir, ou ler, por aí a recomendação de que se leia uma obra qualquer na língua original. É, de fato, prática comum na academia e em ambientes de nível de intelectualização alto, ou pretensamente alto. Nada contra ler no original, mas há aí certo preconceito indisfarçável contra a tradução. Preconceito que, aliás, muitas vezes se verifica bem fundado.

O problema é que o preconceito, só por sê-lo, já denota erro de princípio. A tradução não será, necessariamente, inferior ao original. Pode igualá-lo, sim, e até, em certos casos, ultrapassá-lo em beleza de estilo, por exemplo, numa obra literária, ou em clareza e objetividade, num texto técnico-científico.

O problema se resume a duas variáveis fundamentais: tempo e dinheiro. Quanto mais se investe, em tempo e dinheiro, numa tradução, melhor, claro, será o resultado. Tempo para pesquisar. Dinheiro para dedicar-se. Quando se recomenda ler um livro no original, raramente se faz essa reflexão. Tende-se a considerar ou a tradução, em si, como um processo necessariamente deturpador (e estaria aí, em semente, uma de suas qualidades); ou os tradutores como um bando de idiotas ou senão gente de caráter e capacidade duvidosos.

Trata-se, porém, de resultado de uma equação econômica simples: ninguém trabalha de graça, nem existe almoço grátis. As editoras, muitas delas pelo menos, desprezam solenemente a atividade da tradução, relegando-a ao segundo ou terceiro planos de sua prioridade — quando o volume de traduções é absurdamente elevado em face da produção editorial nacional. Não se investe em procurar talentos, em bem remunerá-los — fato que afasta, naturalmente, bons profissionais de um ofício que executariam com prazer e competência, senão com brilhantismo.

Sendo a prioridade gastar o menos possível com o custo da tradução, não é de admirar que o resultado sejam traduções sofríveis, às vezes simplesmente lamentáveis. A causa é óbvia demais: a remuneração parca, e o também escasso reconhecimento, afastam os bons tradutores; ocupam o espaço no mercado os neófitos, os medíocres, os idiotas — e, não raro, os aproveitadores.

A mancha no cartaz dos tradutores é evidente demais. Excluídos da lida os verdadeiros profissionais, sobra-lhes o nome sujo na praça por aquilo que não fizeram. A culpa não é atribuída aos irresponsáveis das editoras, que contratam qualquer um por um valor qualquer, nem aos loucos que se metem a traduzir sem o mínimo de preparação e competência.

Como censurar, então, a arrogância de quem recomenda que se leia somente o original, que se corra da tradução como de uma fonte viciada e suspeita? A censura ainda é válida, em princípio, seja pela arrogância pura e simples, seja pelo erro de desprezar boas traduções por conta do preconceito — e, assim, ajudar a manter girando o círculo vicioso.

Seria hora de traçar linha divisória clara entre a boa tradução, aquela que vale a pena ler em detrimento, às vezes, do próprio original, e a tradução do aventureiro e do incapaz. A linha ficaria mais nítida se desenhada nos escritórios das grandes editoras, que teriam a competência e a capacidade econômica de firmar, pela límpida distinção da remuneração, a diferença entre o tradutor bom e o ruim.

Para vencer preconceitos arraigados não basta espernear e militar no campo da teoria. Nesse, como em outros casos, é preciso agir com concretude e persistência, mostrando, em bons textos, com quantos dinheiros se faz uma boa tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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