O papel da tradução como formadora das literaturas

Não se nega o papel da tradução na evolução e na estruturação das línguas, assim como não se pode negar seu papel na formação das literaturas nacionais, ou da literatura específica de cada língua
01/05/2009

Não se nega o papel da tradução na evolução e na estruturação das línguas, assim como não se pode negar seu papel na formação das literaturas nacionais, ou da literatura específica de cada língua. Uma tradução literária não é apenas papel-carbono de outro texto, mas uma obra potencialmente inseminadora, que pode disparar um ou vários movimentos literários numa dada cultura.

A literatura em certa língua é marcada pelos limites dessa língua, sim, pelas fronteiras que erige em relação a outros idiomas, mas também pelos fluxos que advêm dos pontos porosos dessas fronteiras. As fronteiras, de fato, não são marcadas com tanta exatidão. Os marcos, por assim dizer, são móveis, plásticos, ajustáveis, de modo tal que pareceria mais correto falar em “zonas fronteiriças” (como algo bidimensional), e não meramente em “fronteiras” (unidimensionais).

O derretimento das fronteiras entre as línguas às vezes parece real, tanto quanto a liquefação das calotas polares. Aceleram-se os contatos interlingüísticos, a internet nos oferece, cada vez mais, páginas multilíngües onde pululam as interpenetrações, os decalques, as más traduções e todas as demais imperfeições provocadas por decisões excessivamente apressadas. Mas as literaturas nacionais, paradoxalmente, se reafirmam nesse ambiente caótico, impulsionadas por um de seus motores mais possantes: a tradução.

Nunca se traduziu tanto, claro, como nunca se escreveu tanto. Alguém julgará a qualidade de tudo o que se escreve, mas o fato é que muito se escreve e muito se lê (talvez menos livros e cartas que páginas de internet e e-mails). A literatura se beneficia desse movimento caótico, e os núcleos entrópicos lhe bafejam aragens renovadoras. Alguém há de julgar, que não sou eu.

A literatura se areja com a tradução, com o influxo de idéias, palavras, mentalidades e discursos estrangeiros, sejam naturalizados ou não. Uma literatura forte se fortalece com essa afluência, enquanto outra, fraca, pode sucumbir sob a pressão da torrente. Assim como uma língua “dura”, incapaz de aparar influxos e ajustá-los a seu molde, pode sucumbir ao peso pesado da própria rigidez.

A tradução forma a literatura ao soprar, da língua estrangeira, novos conceitos, novos estilos, novas formas de narrar, novos temas sobre que escrever. Forma a literatura, especialmente, quando introduz as obras seminais, que marcam toda uma geração e detonam a vontade de escrever, o motivo de escrever, e, principalmente, a avidez da leitura.

A tradução de obras gregas formou a literatura latina, assim como a tradução de obras francesas e inglesas, somadas à influência de Portugal, formou a literatura brasileira. A literatura inglesa, por sua vez, pelo menos até o final do século 19, foi em boa parte desenhada sob influxo francês. E por aí vai. As fronteiras vão sendo empurradas, e sob pressão, suas deformações acabam formando não apenas novas formas de dizer, mas novas formas de literatura.

A tradução, claro, também formou autores. Grandes expoentes da literatura brasileira, como Machado e Lobato, militaram na tradução ou produziram reflexões importantes sobre esse ofício. Para não falar em expoentes de outras tantas literaturas. O segundo ofício mais antigo do mundo, apesar de todo o seu estigma, todo o seu descrédito, toda a sua desdita, tem lá seus belos rebentos.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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