Comparações são às vezes irresponsáveis, sempre perigosas. Mas quem resiste à tentação? Difícil não fazê-las, até compulsivamente. A tradução é pródiga em translações, ou seja, em metáforas. Não vou cansar o leitor aqui com uma lista de metáforas tradutórias. Talvez noutra oportunidade. Mas uma comparação me é especialmente cara: tradução e jornalismo. Unir as minhas duas primeiras profissões, encontrar nelas pontos de contatos e quem sabe o motivo que me fez passar de uma para a outra.
Para comparar os dois campos, creio possível partir de dois pares complementares: fato e versão, no jornalismo, e original e texto traduzido, na tradução. Ouve-se de vez em quando no jornalismo que não existem fatos, apenas versões. Na tradução, diz-se, embora muito raramente se aceite, que não existem originais, só traduções.
A semelhança é óbvia demais. O paralelismo é gritante entre os dois pares. O fato e o original como a coisa-em-si em vista da qual toda versão e toda tradução nada mais são que distorções. Se possível descartáveis. Infelizmente indispensáveis. Ideal seria alcançar o fato puro e o original imaculado. Não sendo possível — vá lá! —, nos contentamos mesmo com pobres versões e traduções.
No jornalismo, como na tradução, vige, ou vive, o mito da objetividade. Sonha-se possível apresentar o fato puro, livre de quaisquer nódoas de subjetividade, de quaisquer manchas de ideologia. A meta é o discurso límpido, asséptico, como se fosse possível isolar inteiramente o fato das circunstâncias — e mais, como se ao jornalista fosse possível sair de si mesmo para enxergar o fato com olhos isentos de subjetividade.
Na tradução, o mecanismo é mais ou menos o mesmo. Do tradutor exige-se nada menos que isenção total, objetividade completa, nada menos que a recuperação do original. Inteiro, incorrupto, incólume.
Mas o que temos na prática? Não me arrogo o direito de estabelecer a verdade nessas questões, mas defendo a idéia de que temos, no jornalismo, apenas versões; na tradução, apenas traduções. Trocando em miúdos: não existe “o” fato; ou pelo menos, se existe, não é determinável. Mas há versões do fato, e é isso que nos interessa; disso vem a riqueza inesgotável do jornalismo. A riqueza das versões matizadas pela incorrigível tendência da natureza de variar, caoticamente talvez.
O jornalismo é tradução de um fato que não há. (Mas não só isso, claro.) Absurdo? O fato, que não há, se derrete e verte em várias versões. Mais absurdo ainda? Não. Basta, acho, “desessencializar”, por assim dizer, o fato. Penso no fato como produção, produção de um olhar que tem por trás de si toda uma história de vida, toda uma subjetividade absolutamente inescapável. O olhar do jornalista pesa com muita força na página em branco (em branco?). O que se olha? A versão de uma versão.
Também, creio eu, não existe “o” original de uma tradução. Existem traduções de traduções. O que se traduz? Uma já tradução. O original se perde em cada nova leitura. Cada leitura é uma nova tradução. E tente recuperar o fio dessa meada incrivelmente enrolada e repleta de nós cegos. Eu não tento. Bobagem, trabalho de Sísifo.