Talvez a principal característica da tradução literária, segundo conceitos mais conservadores de teoria tradutória, seja sua impossibilidade. Traduzir literatura seria impossível, como diria o filósofo espanhol Ortega y Gasset. O tradutólogo George Mounin concordaria, acrescentando que a tradução, simplesmente por existir, representa o “escândalo da lingüística contemporânea”.
A tradução da poesia, então, seria especialmente impossível. Para alguns, como o poeta americano Robert Frost, poesia é de fato tudo o que se perde numa tradução. O filósofo italiano Benedetto Croce tinha opinião semelhante, pois julgava o poema algo rigorosamente intraduzível. Como diria Leminski, todo tradutor sabe que, diante de um poema, enfrenta uma tarefa impossível: são as “grandezas e misérias do ofício”.
Fica então a dúvida: como é que algo impossível acontece com tanta freqüência? Pois é fato que a tradução literária, seja de poesia seja de prosa, é cada vez mais um instrumento de contato entre culturas distintas. Cada vez se traduz mais. E cada vez se pode traduzir melhor, em função da aceleração do trânsito de informações, fundamental para um bom trabalho tradutório.
A tese da impossibilidade da tradução literária se baseia na suposta inviabilidade de traduzir ao mesmo tempo forma e conteúdo. Como traduzir, num só lance, a forma de um texto (com todas as dificuldades sintáticas que a transposição de uma língua para outra apresenta) e seu conteúdo (com todas as armadilhas que as tentativas de identificação do conteúdo podem apresentar)? Misérias do ofício…
De uma certa ótica, porém, a suposta impossibilidade da tradução nada mais é que uma profunda descrença na capacidade criadora (já mais que atestada) do homem. O mesmo intelecto humano que criou uma obra em poesia ou prosa pode muito bem recriá-lo em outro ambiente, outra época e lugar. O que não se pode fazer é exigir uma obra “igual” em outra língua. Isso sim é impossível. Talvez o problema todo esteja em definir precisamente o que é tradução: exata igualdade ou transformação criativa. Fico com a segunda opção.
Definir tradução como transformação criativa, porém, não eqüivale a aceitar automaticamente qualquer tradução. São inúmeros os exemplos de traduções ruins, muitas delas resultado mais da incompetência do tradutor em sua própria língua do que na dificuldade de entendimento do texto original.
De outra ótica, existe uma forma positiva de encarar a “impossibilidade” da tradução literária. Aceitando-a como impossível, eleva-se o ato tradutório à categoria de arte. A arte de fazer o impossível. Pois só os artistas e os visionários teimam em tentar (e conseguir!) o impossível. Essa perspectiva positiva se encontra, por exemplo, em Paulo Rónai: “O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível”.
A impossibilidade é um grande desafio, e a superação de desafios sempre dá uma sensação inigualável de satisfação e deleite. Dizia Paul Valéry que uma dificuldade é uma luz. Ampliando, o filósofo americano Willard van Orman Quine tascou: “uma dificuldade insuperável é um sol”.
Traduzir é mesmo tarefa difícil, e isso só engrandece o ofício. Fosse fácil, que valor teria? A suposta impossibilidade lhe dá um ar de arte superior, acessível apenas aos iniciados. Grandezas do ofício…
P.S. Viva o primeiro aniversário do Rascunho. Longa vida!