O dicionário de Quine

O ofício do tradutor é seu único remédio
O filósofo americano Willard van Orman Quine
25/03/2016

O filósofo americano Willard van Orman Quine não escrevia especificamente sobre tradução. Intermitentemente, talvez. Em seu Quiddities — An intermittently philosophical dictionary, Quine divaga sobre 83 temas ou seções distintas, organizadas em ordem alfabética (daí o nome dicionário). Volta e meia resvala para a tradução, o que não é de admirar para quem, como ele, discorre tanto sobre a linguagem.

Já tive oportunidade, neste mesmo espaço, de tocar de leve em alguns conceitos expressos por Quine nesse mesmo livro. Falei, especificamente, da ideia de “biblioteca universal”. Uma fantasia, na verdade. E fascinante. Não é conceito original de Quine. Mas o filósofo tece, sem dúvida, comentários instigantes. Não sei se oriento o leitor a minha coluna — publicada alguns anos atrás, já nem me lembro quantos — ou ao original. Melhor recomendar o original, especialmente se quem escreve é (ou foi) tradutor. Falo, evidentemente, do original em inglês (haveria outro?), pois desconheço tradução para o nosso português.

Antes de falar especificamente sobre a tradução em Quiddities, creio que valeria mencionar o conceito de “indeterminação da tradução”, expresso em outros livros de Quine (especialmente em Word and object). Ali, o autor argumenta ser possível elaborar distintos manuais de tradução de um idioma desconhecido — todos eles igualmente válidos e, paradoxalmente, inconciliáveis. São imensas as consequências disso para a tradução literária, na qual os sentidos encontram, talvez, sua maior amplitude e dispersão. Deixo aqui apenas a menção. A reflexão sobre esse conceito fica para outra oportunidade.

Voltemos a Quiddities. A seção sobre “idiotismos” (ou idiomatismos) é saborosa para o tradutor. Ali o filósofo divaga sobre idiotismos de diferentes línguas, suas possíveis traduções literais e as naturais confusões que daí decorrem. Ao fechar a seção, Quine analisa a expressão espanhola “ya no puede caminar” e duas traduções possíveis para o inglês, uma literal (“already he cannot get around”) e outra, digamos, mais idiomática (“he can’t get around any more”). Arremata, comparando a expressão original e sua (boa) tradução: “Ambos chegam ao mesmo lugar e são igualmente claros. Mas cada um podia ser considerado pelo outro falante como impenetravelmente idiótico”.

A seção “Significado”, claro, também traz elementos interessantes para a reflexão sobre o ato tradutório. Quine descreve, ali, uma noção bem comum de tradução, vinculada à própria noção de significado. Diz, literalmente (sem nenhuma ironia), que “as pessoas tendem a pensar em significados de expressão um pouco como se fossem espécimes num museu de ideias, cada um rotulado com a expressão apropriada. A tradução de uma língua em outra consiste em trocar os rótulos”.

Quine, obviamente, distancia-se dessa tendência, associando-se antes à ideia de “uso” que de “rótulo”. Coerente com esse pensamento, defende que a aprendizagem do significado está vinculada à apreensão do que é observável no comportamento verbal manifesto e suas circunstâncias. Daí, talvez, todo o espaço que sobra para apreensões e interpretações distintas, segundo variem comportamento e circunstância.

Há diversos outros verbetes que trazem luzes para o estudo da tradução. “Sentidos de Palavras” é um deles, como não poderia deixar de ser. Uma frase talvez resuma o pensamento de Quine a respeito da expressão: “O que repudio é a objetificação rígida de sentido. Abandone-o… e deixe a gramática analisá-lo…”

O verbete sobre “linguagens artificiais” é também instigante para o tradutor. Interessante ler sobre o aparecimento e o (aparente) naufrágio de línguas artificiais como o esperanto e a interlíngua. Interessante, especialmente, notar suas implicações para a tradução — em particular, que o ímpeto de Babel permanece vivíssimo, e que o ofício do tradutor é seu único remédio.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho