Notas sobre o Fausto (3)

A tradução é de fato o terreno em que se cruzam o desespero do impossível e a imposição do necessário
Goethe por Joseph Karl Stieler, 1828
01/10/2023

Volto a discorrer sobre a tradução para o português brasileiro do Fausto de Goethe, empreendida por Jenny Klabin Segall. Desta vez, vou me ater ao posfácio da 5ª edição da Itatiaia, de 2002, assinado por Sérgio Buarque de Holanda.

Em seu texto, o historiador e sociólogo brasileiro tece comentários sobre a concepção goethiana de tradução, como preparação para a avaliação que fará do trabalho de Klabin Segall.

Buarque de Holanda aponta que Goethe, em conversas com o poeta alemão Johann Peter Eckermann, comparara a tradução à reprodução de quadros originais. Para Goethe, as técnicas de reprodução de pinturas de seu tempo, embora caracterizadas por grande precisão, não conseguiam expressar a alma da obra matriz, encontrável em cópias mais antigas, feitas com meios mais rústicos. Extrapolando o mesmo raciocínio para as obras literárias, Goethe considerava que, também na tradução, a melhor versão não seria necessariamente aquela realizada com a técnica mais esmerada e mais moderna, mas com uma percepção mais transparente e imediata do original, que fosse capaz de transmitir essa interpretação direta ao leitor.

Buarque de Holanda opina que o próprio Fausto exibiria essa característica que o autor alemão quisera encontrar nas traduções: a captura da “realidade viva em sua unidade e totalidade”. Ressalva que Goethe não necessariamente se oporia ao uso da lógica e à aplicação de técnicas racionais na composição literária e na tradução, desde que em estreita vinculação com as “demais formas de saber” e com as “atividades mais generosamente criadoras” e sem que se transformem em vetores de desagregação da realidade.

Na mesma linha de raciocínio, para Goethe, segundo Buarque de Holanda, “o tradutor ideal deve ser capaz de viver profundamente a obra para poder captar e transmitir sua essência verdadeira”. Essa pareceria ser a principal habilidade do tradutor, segundo a concepção goethiana, e de tal modo preponderante que chegaria a ultrapassar, em importância, a percepção e a interpretação precisa de detalhes textuais.

Essa ênfase na apreensão direta e afetiva do original, contudo, conforme análise do autor do posfácio, tampouco se deveria fazer em detrimento de certo rigor formal. Nas já mencionadas conversas com Eckermann, Goethe recorda os empecilhos que representa, na versão de poemas, o caráter monossilábico e concentrado do inglês — fato que poderia provocar perda sensível na tradução, em particular no tocante à intensidade expressa no texto matriz. Dessa forma, o poeta alemão indica a necessidade de que o tradutor atente também nas minúcias, que deverão fazer parte de sua percepção sensível e direta do original.

Buarque de Holanda ilustra, a propósito do zelo de Goethe no manejo de traduções, que o escritor alemão proibiu de maneira enfática a publicação de suas traduções de poemas esparsos de Byron — as quais deveriam ser consideradas como meros ensaios ou rascunhos.

A atenção dispensada pelo autor alemão às questões tradutórias, além do prestígio mesmo de sua obra, eleva o grau de exigência sobre uma tradução do Fausto. Esse nível de exigência, para o sociólogo brasileiro, se exprimiria em dois critérios específicos, ambos situados em plano de idealização quase inalcançável, embora sem dúvida desejáveis: apego ao “espírito do autor”; e fidelidade às “circunstâncias de seu texto”.

A tradução é de fato o terreno em que se cruzam o desespero do impossível e a imposição do necessário. E, para Buarque de Holanda, Klabin Segall se saiu muito bem no domínio dessa difícil conjunção.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho