Notas sobre o Fausto (2)

As limitações e desafios da tradução, segundo Antônio Houaiss
Goethe, autor de “Fausto”
01/09/2023

Dou sequência, nesta coluna, à resenha do prefácio de Antônio Houaiss à tradução para o português do Fausto de Goethe, realizada pela brasileira Jenny Klabin Segall. Houaiss dedica boa parte do prefácio a uma reflexão geral sobre a tradução e seu impacto sobre o desenvolvimento das línguas. Examina, também, na seção final, a versão oferecida pela tradutora.

O filólogo não deixa de citar o “inglório refrão italiano” traduttore, traditore ao avaliar que o exercício da tradução, definido por ele como o “‘levar de uma para outra língua’ um continuum verbal, de preferência um texto”, não apenas suscitou, ao longo das eras, as maiores especulações, mas também conduziu “aos maiores equívocos, às maiores traições”.

Houaiss cogita que, em estágio anterior da evolução da linguagem, a tradução funcionava em ambiente mais livre, sem as amarras — que viriam depois — dos “cânones fixados por uma tradição literária da língua para a qual se traduzia”. Nessa época primeva, segundo o dicionarista, as traduções trabalhavam de forma mais direta com “textos de riqueza total humana”, implicando interação mais imediata com a realidade percebida, sem a interposição hierarquizante dos padrões e do acervo da língua.

O tradutor, dessa forma, se encontrava em ambiente mais leve, no qual podia potencializar com grande autonomia as possibilidades que lhe abriam seu sistema linguístico.

O momento posterior, segundo Houaiss, é caracterizado pela mediação do acervo lexical e pelos parâmetros sintáticos que se foram cristalizando em cada idioma. Esse novo ambiente, se fornecia ao tradutor diversos instrumentos e balizas que canalizavam seu ofício, impunha as raias da correção e da pureza, normatizadas conforme a documentação acumulada da língua. O tradutor, então, tinha diante de si os marcos “do que ‘podia’ ou ‘não podia’ ser dito”. Para o autor do prefácio, perdia-se assim a noção “de que uma língua é um sistema que me possibilita dizer o inédito de forma tal que o meu interlocutor possa receber esse inédito quase como se não o fora”.

Apesar desse balizamento relativo fornecido pelo acervo normativo de cada língua, para Houaiss “toda tradução é um texto insatisfatório, porque toda tradução comportaria solução diferente”. Uma afirmação razoavelmente óbvia, decerto. Por isso mesmo o filólogo vai além, oferecendo alguns critérios/indagações com vistas a aferir a qualidade do texto traduzido: “até onde obedece ao cânon e por que, ao infringi-lo, o faz por conexa infração do original?; até onde, não preservando o enlace de valores do original, perde valores substanciais sem dar valores compensatórios?; cria enlace equiparável?”.

Além dos parâmetros indagatórios expostos acima, Houaiss também apontou, não sem certo amargor e contundência — em menção velada, talvez, aos críticos de suas próprias traduções —, o que não se poderia exigir em um texto traduzido, a saber, a reprodução da totalidade de valores que se podem encontrar em cada passagem do original — reprodução essa que, se fosse possível, “devolveria a tradução ao original, matando-a”. Não seria disparatado vislumbrar aqui uma conexão com a utopia do Pierre Menard borgiano.

Finalmente, sobre a tradução de Klabin Segall, Houaiss indica, como uma das qualidades de seu trabalho, o fato de haver preservado, no texto traduzido, os elementos de elipse, enigma, estranhamento e dissimulação. Elementos esses a instigar questões que poderiam ser suscitadas também pelo próprio original. A tradutora absteve-se, portanto, da sanha explanatória que poderia transformar seu texto em “glosa ou paráfrase do universo mental goethe-faustiano” — pervertendo assim o caráter múltiplo, instigante e inventivo da obra original. Um êxito considerável, com toda a certeza, para dizer o mínimo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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