Nota sobre a tradução

O tradutor Lawrence Flores Pereira se atira a uma tarefa complexa
29/01/2017

 

As “notas sobre a tradução” são verdadeiro deleite para quem se interessa pelos estudos sobre esse ofício antigo. Pena que nem toda obra traduzida as traga. Há que aproveitar as relativamente poucas e extrair delas o sumo. Eis o que tento, outra vez, aqui.

Trata-se, hoje, da tradução de Hamlet para o português brasileiro. Uma entre tantas. Essa publicada recentemente, em 2015, pela Penguin Classics/Companhia das Letras. O tradutor é Lawrence Flores Pereira. A nota é relativamente longa, ocupando quase seis páginas da edição, logo após a introdução. Vale o tempo dedicado à sua leitura.

O início é promissor. Recupera interessante conceito de Haroldo de Campos, que qualifica a tradução de poesia como um “canto paralelo”. Bela expressão, de fato, que alça o texto traduzido à condição de quase-par do original. Quase? Em se tratando de poesia, talvez pudéssemos elidir o quase.

Haroldo de Campos, na citação de Flores Pereira, parece lançar a tradução a um estágio superior, no qual ao original se acrescem novas “vozes textuais”. Atribui-se à tradução o mérito de enriquecer o original ou, visto de outro modo, de produzir um novo texto, com vozes novas. Vozes inspiradas no original, em ato “plagiotrópico”.

As novas vozes se materializam na pena do tradutor, fundamentadas em leituras prévias, influências, restos esparsos de memória que se aglutinam e revivem no papel. O caso concreto, citado por Flores Pereira, é a infiltração das vozes de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, na versão haroldiana do Fausto de Goethe. São três vozes principais que se fundem, assessoradas, certamente, por uma infinidade de outras vozes que assombram autores, textos e tradutores. Impossível retraçar todas as influências.

Com esse conceito em mente, Flores Pereira se atira a uma tarefa complexa, em que é necessário traduzir Hamlet “com toda a sua versatilidade mirabolante do chulo até o sublime”. Tarefa deveras complexa, em que se mesclam as finíssimas sutilezas de um original clássico, afastado no tempo e no espaço, à natural dificuldade de verter um texto já tantas vezes traduzido. Há que ser original na tradução, pois as versões anteriores pairam como fantasmas que se juntam àqueles do próprio original.

São muitas as assombrações, como também são muitas as sutilezas. Parte destas, indica Flores Pereira, estão nas inúmeras referências shakespearianas a textos e disciplinas da época. Áreas do conhecimento, como alquimia, medicina e botânica, afloram amiúde no texto da peça. O tradutor tem não só que identificar esses afloramentos, mas reunir engenho suficiente para bem traduzi-los. Quem não o faça estará, no mínimo, “achatando” esse texto clássico em versão que não merecerá sequer o nome tradução. Redução será chamada.

Em sua tradução do Hamlet, Flores Pereira teria procurado justamente evitar esse achatamento. Teria buscado uma reconstrução. A reconstituição do texto original, em sua riqueza “polissêmica e poliformal de gêneros, contextos, formas e tons”.

Outra dificuldade a superar foi o imperativo de tornar o texto não apenas legível, mas pronunciável. O tradutor tinha em mente a encenação teatral, não apenas a leitura silenciosa. Era, então, preciso evitar que o “conversacional” se transformasse, na tradução, em “emaranhado” que perturbasse “a compreensão das falas no timing demandado pelo teatro”.

A tradução é assim. É difícil assim, quando levada a sério, como veículo de transmissão de cultura e conhecimento. A tradução malfeita é para o original como aquela espada ungida no óleo de Laerte: “onde o sangue escorrer, não haverá emplastro tirado de ervas fortes colhidas à lua capaz de resgatar da morte o que sofrer um simples arranhão”. Letal.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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