Nagarjuna e o processo de fazer sentido

Nagarjuna, filósofo budista indiano do século 2 d.C
01/11/2001

Nagarjuna, filósofo budista indiano do século 2 d.C., não deve ter imaginado que seu nome um dia seria invocado num texto qualquer sobre tradução. Aliás, sobre teoria da tradução. Mas era filósofo e, como tal, não se importaria de ver seu nome e sua obra recuperados por colegas ocidentais do século 20. Quem nunca ouviu falar de Nagarjuna certamente ficaria surpreso ao saber que as idéias desse indiano obscuro foram comparadas com construções filosóficas de gente como Heráclito, Protágoras, Willard Van Orman Quine, Hans Georg Gadamer, Jurgen Habermas, Richard Rorty, Jacques Derrida, Immanuel Kant, Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein, entre outros.

Desde o século 19 houve, em certos meios filosóficos, um movimento de redescoberta desse remoto filósofo indiano, que se tornou hoje o pensador oriental mais estudado no Ocidente. Houve até quem considerasse um “escândalo intelectual” que as idéias de Nagarjuna fossem tão pouco conhecidas neste hemisfério.

No Oriente e em círculos budistas, o nome é mais conhecido. Algumas escolas budistas o têm mesmo como um “segundo Buda”, aquele que mais próximo teria chegado da iluminação do primeiro.

Nagarjuna era um radical. Não desses que explodem e matam, mas daqueles que inseminam, lançam luzes novas. Como bom radical, não transigia. Polemista aguerrido, destruía objeções, defendia com garra seu “caminho do meio”.

Nos deixou métodos de argumentação engenhosos, e principalmente conceitos que fascinam alguns filósofos de hoje. Não acreditava em nada metafísico, em nada que tivesse essência, em nada que fosse permanente, em nada que não fosse vazio. Oriental, nada tinha de místico ou esotérico. Negava a essência sem ser niilista, assim como negava o metafísico sem ser materialista.

Seu estreito caminho do meio era percorrer o fio afiado da navalha: todas as coisas, impermanentes, vêm e vão num jogo sem fim de originação dependente. Não há causação, mas dependência. A existência não carece de essências, mas de relações de dependência. Coisas se originam de coisas por processos de dependência.

No salto para a reflexão sobre a tradução, Nagarjuna nos oferece a opção da convencionalidade, da interdependência dos significados convencionais, da força da marca de tempo e lugar sobrepujando qualquer traço de origem, da preponderância dos elementos culturais e sociais sobre os lingüísticos, da primazia da entropia historicamente condicionada sobre a ordem teleológica.

Analisar as conseqüências das idéias de Nagarjuna para os estudos da linguagem e da tradução é algo que ainda se ensaia. Mas pelo menos se ensaia. Já se escreveu sobre Nagarjuna e linguagem. Falta ligar à tradução os conceitos nagarjunianos de linguagem.

O texto é vazio mas faz sentido. O que faz sentido? Melhor perguntar: quem faz sentido? Um texto só faz sentido via tradução operada por um sujeito. Sobre a matéria bruta de tinta e papel, envolta em convenção, o sentido se faz por relações de dependência, por um processo de originação sem origem, sem começo nem fim. Nagarjuna não poderia mesmo imaginar. Certamente não quereria.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho