Na frieza, o maior engano do tradutor

Tradução é risco. Inegável. É terreno de inúmeras dúvidas e uma certeza incômoda: a certeza de errar
01/04/2010

Tradução é risco. Inegável. É terreno de inúmeras dúvidas e uma certeza incômoda: a certeza de errar. Traduzindo, erra-se sempre. Se não na forma, no conteúdo. Se não no sentido, no estilo. É uma empreitada que não tem como dar certo. É irrealizável, fadada ao fracasso mais fundo. Além de todos os vícios, como fossem poucos, é ainda uma forma de plágio. Deveria ser proibida, não fora tão útil e mesmo necessária. O que não a exime de todos os seus erros nem a redime de todos os seus tantos pecados.

D’Alembert, o enciclopedista, diria que o maior pecado do tradutor seria a frieza. Pode-se perdoar tudo àquele que se entrega a um ofício destinado ao engano, menos a frieza, o mecanicismo — uma forma de desdém. O frio mata, mas o ardor vivifica.

A obra literária é escrita com ardor e arrojo. A tradução da obra literária deve ser feita com essas mesmas qualidades. Erra-se menos pela ousadia que pelo retraimento e pelo excesso de contenção. Traduzir não é tarefa para muitos comedimentos. A obra literária é pensada, lapidada, fruto de inspiração e suor. Traduzir com frieza, burocraticamente, mata a obra. Não ousar na tradução é um insulto ao impulso criador, naturalmente ousado, que criou o original. Um insulto ao autor.

A frieza de uma obra literária é aparente: reside na superfície fria e áspera do papel, ou na luz morna da tela de computador. Esquenta sob os olhos do leitor; ferve com o molho da imaginação. De certa forma, traduzir literalmente — ou tentar fazê-lo — é traduzir com frieza. A letra, só, mata a obra. O espírito audacioso a vivifica.

Na tradução, o frio é danoso, mas o morno tampouco salva. O leitor, exigente, não vomita apenas o morno, mas tudo o que não é quente. O autor do original, nauseado, faria o mesmo. O frio com ainda mais razão que o morno. Não basta caminhar meio caminho. Ousar só se ousa do princípio ao fim. Diria D’Alembert que mais vale ao tradutor acrescentar algo de si, como sempre faz o autor do original, que deixar no texto a fria cicatriz da lacuna. No texto traduzido, a lacuna ante o original representa o retraimento e a covardia — a falta de ímpeto para enfrentar o desafio, que é todo o sabor, mesmo que também a dor, do ofício.

A frieza representa uma atitude de aproximação da letra e de distanciamento do texto — algo francamente deletério, não só para a tradução, mas também para o original. Talvez principalmente para o original, que tanto depende de sua tradução para existir. É preciso ter a visão do todo — uma espécie de sobrevôo —, mas igualmente é preciso mergulhar na selva densa e úmida desse exuberante entrelaçado de palavras e idéias de que é feita a literatura. Facão à mão, avançar cortando, sem piedade, abrindo caminho para que o texto flua de uma língua a outra, de um país a outro, do passado ao futuro.

Pode parecer cruel, mas é preciso dilacerar o original para dele tirar a seiva que vai vivificar um outro texto. A obra literária se faz assim, com sangue e suor. A tradução se deve fazer da mesma forma, com litros de suor, com jorros de sangue de mesmo volume.

Ardor na tradução — a paixão vigorosa que devota o tradutor ao original — representa familiaridade com o texto e distanciamento da letra. Embriagar-se do texto e esquecer a letra. Absorver o original, digeri-lo e secretá-lo pelo bico da esferográfica, ou pela ponta dos dedos nas teclas. É processo mecânico ou alquimia? Tarefa fácil não é, lhes garanto.

De todos os pecados, tradutor, há um que não lhe será perdoado: a frieza.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho