A música e a canção oferecem farta substância para a tradução e para a reflexão que se pode construir sobre esse ofício. De fato, a música, em suas diversas formas, representa campo fértil para uma série de processos tradutórios. Alguns mais óbvios, como as versões de canções de uma língua a outra; outros mais sutis, como as distintas interpretações de uma letra de música ou a composição da letra sobre melodia preexistente.
Caetano Veloso, em seu Verdade tropical, relata experiência vivida em Portugal, onde um senhor, tido como alquimista, lhe ofereceu interpretação surpreendente (para ele, Caetano) da letra da canção Tropicália. O compositor se admirou ante a leitura que o alquimista português emprestou aos versos, “tudo […] tomado à letra e valorado positivamente”, sem nenhum reconhecimento dos traços de ironia e denúncia política que o próprio autor lhes atribuía.
E, relata Caetano, não adiantou argumentar que o sentido “original” da letra era bem outro, muito mais sombrio e negativo. Ante a contestação do autor, risos e sorrisos do alquimista, arrematados por um comentário instigante: “O que sabem as mães sobre os seus filhos?”. De fato, o que sabe o autor sobre seu texto, para além dos fragmentos de memória que o inspiraram? Mais um caso de soberana rebeldia do leitor/tradutor…
Caetano recorda que o senhor português lhe parecia “certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu”, o que, claro, chocaria qualquer autor. Mas comenta, ao final do relato, resignado: “… eu já sabia então que as canções têm vida própria e que outros podem revelar-lhes sentidos que seu autor não teria suspeitado”. É assim que funciona.
Outra reflexão inspiradora vem de um texto de João do Rio, A musa das ruas, em que o autor discorre sobre os poetas populares, os trovadores da calçada. Entre outros, menciona, com boa dose de ironia, o “Sr. Catulo”, “esteta da prosa popular”, compositor de canções com base em peças musicais preexistentes. Segundo o cronista carioca, Catulo sentenciava: “Há algumas dessas músicas que me fazem levar horas inteiras a interpretar-lhes os sentimentos, os queixumes, as mágoas de que sofrem seus autores”.
E Catulo não duvidava um segundo de seu talento nem do apuro certeiro de suas transcriações, asseverando que seu verso se adaptava perfeitamente à melodia, transmitindo exatamente o que dizia a música, com todas as suas cores.
Eis aí, ressalvados o deboche de João do Rio e a presunção do Sr. Catulo, um belo exemplo de tradução intersemiótica. Algo bem mais complexo e, apesar das alegações de Catulo, bem mais impreciso do que a já impossível tradução entre textos. Afinal, transformar melodia em versos é processo que exige bons conhecimentos de música e da linguagem poética. Especialmente quando se tem a pretensão de ser preciso, ou, melhor, perfeito.
E mesmo que não se tenha a ambição do sublime, já parece tarefa suficientemente abstrusa a identificação de sentimentos e ideias na linha melódica e, na sequência, sua transcrição em versos que se ajustem ao compasso musical. Por isso as horas e horas que Catulo dedicava a esse trabalho, naqueles casos mais difíceis…
No fim das contas, a tradução será sempre mais complexa quanto mais de perto a pretendamos analisar. Haverá sempre algo vivo a levar em conta, algo que transcende a letra morta ou mesmo a interpretação mecânica de uma música. Como diria Rainer Maria Rilke, traduzir envolve identificar e preservar o movimento, o ritmo e a música do original. Preservar o calor de um organismo vivo.