Já tive oportunidade de falar algo de Fernando Pessoa neste espaço, anos atrás. Em especial, Pessoa foi assíduo tradutor, tanto de textos comerciais quanto literários (prosa e verso) —, e trabalhava com línguas diversas, incluindo, além do português e do inglês (nos dois sentidos), o francês e o espanhol. Acima de tudo, traduziu seus próprios textos, do português para o inglês — além de diversos poemas de seus heterônimos. Pessoa teria sido autor “translacional”, segundo Liz Wren-Owens. E não apenas pela importância da tradução em sua vida (inclusive como ganha-pão), mas pelo seu bilinguismo (português-inglês).
Pessoa publicou em vida uma única obra de poesia em português: o livro Mensagem. A obra contém uma “nota preliminar”, na qual o poeta português elenca as qualidades indispensáveis para a interpretação dos símbolos — que, aliás, abundam nos poemas que vêm a seguir.
As cinco qualidades listadas por Pessoa — ou pelo menos três delas — podem servir de guia para uma boa estratégia de tradução.
A primeira é a simpatia, no sentido da identificação do intérprete/tradutor com o símbolo/original. Trata-se de uma qualidade subjetiva, certo, mas que pode, sim, influenciar tremendamente a qualidade final da tradução, por representar elemento de estímulo a um esforço adicional de cuidado com o texto, com consequente impacto na acuidade da versão.
A segunda qualidade tem característica ainda mais subjetiva, o que torna difícil sua aplicação racional e universal. Trata-se da intuição, entendida como, segundo o próprio Pessoa, “aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja”. Procurando trazer o conceito para a terra, pode-se argumentar que a intuição é um elemento favorecido pelo estudo sistemático do ofício (tradução) e do objeto imediato (original). Essa definição, embora longe certamente de consensual, dá sentido claro e utilizável ao termo, favorecendo o acúmulo de conhecimentos específicos como pré-requisito para o surgimento de uma percepção teoricamente “instintiva” de significados — que, na realidade, é mediada por uma elevada carga prévia de informações.
A terceira qualidade é a inteligência. Uma possível definição do termo, para uso nas lides da tradução, seria a capacidade de articular significativamente distintos elementos e aspectos da realidade/símbolo/texto. Pessoa a apresenta como um vetor analítico que, com base nas duas primeiras propriedades, desconstrói o símbolo/texto em seus elementos essenciais, para, na sequência, reconstruí-lo em outro ambiente. A operação, fundamental para a tradução, prepara o texto para uma melhor interpretação.
A quarta qualidade é a compreensão, termo que o poeta define como “o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos”. Trata-se, aqui, de uma bagagem de informação — “uma vida”, segundo Pessoa — que permite ao intérprete/tradutor enxergar o símbolo/texto de ângulos distintos, com base em um sólido cabedal de dados e experiências.
A quinta qualidade é algo etérea, definida como “a graça”, ou “a mão do Superior Incógnito”, ou “o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda”. Aqui Pessoa revela seu lado mais esotérico, adicionando ao processo de interpretação um elemento metafísico de difícil assimilação nos procedimentos racionais de tradução/interpretação. De todo modo, é uma qualidade que, se parece não fazer muito sentido numa operação tradutória, apresenta-se bem alinhada com a temática de sua Mensagem, que muito navega nas ondas das alegorias, das lendas e do misticismo.
Pessoa apresenta, com sua nota preliminar, mais que uma proposta geral de interpretação dos símbolos, uma espécie de guia de leitura para uma obra que muito tem de metafórica e, até, hermética. Para entender bem, só traduzindo.