Manuel Bandeira e a escola da tradução

Ainda está para ser escrita a história do impacto da atividade tradutória na carreira de alguns dos grandes escritores brasileiros
Manuel Bandeira
01/06/2006

Ainda está para ser escrita a história do impacto da atividade tradutória na carreira de alguns dos grandes escritores brasileiros. Não foram poucos os que se dedicaram a esse ofício — por necessidade ou por gosto. Manuel Bandeira foi um deles. É difícil mensurar a contribuição que o empenho de tempo e suor em traduções lhe rendeu na obra poética. A tradução da poesia, talvez o ramo mais instigante e desafiador desse ofício, é um exercício poético de raro valor.

A poesia — como as demais formas de escritura — não depende, nem pode depender, apenas de vontade ou inspiração. Não se trata apenas de exteriorização e sedimentação gráfica de sentimentos. Exigem-se altas doses de disciplina, aplicação, pesquisa lexical — em suma, um pesado trabalho intelectual, que, às vezes, na briga com o computador ou o lápis-papel, pode chegar ao esforço braçal.

A tradução da poesia é o supra-sumo, como objeto de estudo, de quem se dedica a examinar o fenômeno tradutório. Na poesia convergem sentido, ritmo, rima, a materialidade da palavra, e, até, às vezes, a distribuição espacial dos termos. Num poema, a língua alcança o ápice em termos de poder de significação e comunicação. Tudo ali pode querer dizer algo. Traduzir todo esse conjunto não é exatamente fácil, nem, claro, é algo que poderia ser matematicamente deduzido ou analisado.

Bandeira traduziu muito. Não só poesia. Traduziu biografias, romances, teatro. Shakespeare, Edgar Allan Poe. Menciona-se que a intensa militância na tradução de prosa influenciou Bandeira na guinada que o levou da poesia tradicional, rimada e metrificada, ao verso livre da poesia modernista.

Bandeira traduziu muita poesia. Verteu para o português, dentre outros, poemas de Goethe, Gabriela Mistral, Emily Dickinson e Omar Khayyam. Foram certamente exercícios que o ajudaram a aperfeiçoar a técnica de lapidação do texto em poema. Para as letras brasileiras, um duplo benefício: o aprimoramento da habilidade de um de seus grandes poetas e, de quebra, a incorporação ao português brasileiro de grandes obras poéticas estrangeiras.

Dizem que só um grande poeta poderia traduzir outro grande poeta. Bandeira, por esse prisma, certamente se habilitava para esse exercício. A poesia é uma atividade de risco, carreado pela extrema liberdade que o texto poético exige e confere. O tradutor de poesia, claro, partilha dessa mesma liberdade. Só que, no dizer de Brenno Silveira, tal latitude não representa uma vantagem; pelo contrário, traz implícita a dificuldade de, nada mais nada menos, demandar modificações diante do original, sob pena de uma completa descaracterização do poema.

A tradução também traz implícita outra dimensão curiosa, que se faz sentir especialmente quando tradutor e original estão mais afastados no tempo. É aquilo que Walter Benjamin chamaria de “maturação” das palavras. A lógica que presidiu certa conjugação de palavras em dada época pode ter perdido o sentido ou o efeito em tempos posteriores, enquanto novos efeitos e sugestões podem ter surgido nesse período. É tarefa do tradutor-poeta, como espécie de antena da raça, conhecer, captar e capitalizar essas nuanças, a proveito do leitor. Bandeira foi mestre nessa arte, e noutras também.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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