Pouca gente que se dedica ao ofício da tradução ou ao estudo da tradução ainda tem paciência de falar em fidelidade. Muitas vezes foco central das atenções em debates sobre essa “arte”, fidelidade é hoje pra mim tema mais que aborrecido. Cansado de falar, cansado de ouvir. Mais o afogo, mais teima em espichar a crista atrevida fora d’água.
Se pudesse nunca mais falar nisso! Teima em reaparecer, e sempre com renovada força. Lendo um artigo já quase antigo, de 1996, do Milan Kundera, lá me aparece outra vez. Todo travestido de arte. Tradução: a arte da fidelidade. Já desiludido, mas resignado, teimo também em persistir, lendo. Não é que pulam do texto idéias até instigantes? Quase paradoxais. Dessas que deleitam, fazem sorrir, calar e pensar.
“A fidelidade de uma tradução não é algo mecânico, mas exige inventidade e criatividade. A fidelidade em tradução é uma arte.” Leio e me acalmo. Kundera, prisioneiro, como nós, de uma língua impossível e intragável no mundo que conta, sabe o valor da tradução. Apesar de toda briga, toda celeuma que criou por conta de traduções de obras suas e de outros.
O jogo entre fidelidade e arte não é trivial. Mais comum é, ao pensar em fidelidade, vir-nos à mente algo realmente mais ligado à automaticidade. É o reino do certo, do “certinho”, do regrado e do normal. A arte, com todo o seu quase necessário desregramento, remete ao mundo da emoção, do sentimento e do espontâneo. Enquanto a fidelidade é o regramento e o enquadramento da emoção.
É ligação instável, dessas que na química do muito pequeno não tendem a durar. E talvez o paralelo não seja de todo mau. Na leitura, como na tradução, as reações entre a letra do papel e a mente do leitor são nada estáveis. Cambiantes, na troca da letra ou da mente surgem variações imprevistas. Reações surpreendentes.
A sacada de Kundera não é juntar fidelidade e outros substantivos aparentemente díspares. Unir fidelidade e liberdade, por exemplo, não é algo incomum em discussões sobre tradução — liberdade para a forma e fidelidade para o sentido. Ou unir fidelidade, expressividade e elegância — trio cujo encontro é de rara felicidade em qualquer contexto, e em quaisquer proporções e medidas.
Mas não se trata, para Kundera, de misturar, temperar, encontrar a medida certa de cada ingrediente — fidelidade, liberdade, expressividade, elegância, fluidez etc. O negócio é colocar a criatividade como pré-requisito para a fidelidade, enxertando arte onde ela não é exatamente esperada nem “natural”. Inventividade pra superar a difícil tensão entre os contornos duros da letra e os vôos incontíveis e irreproduzíveis das impressões que ela provoca.
Kundera, revoltado contra tradutores e traduções traiçoeiros, contra revisores podadores, contra editores dinheiristas interessados em padronizar estilos, reclama o resgate da tradução como arte da fidelidade. Não a fidelidade quadrada e estéril da literariedade, mas a fidelidade movida a inventividade.
Vale um minuto de prosa e de silêncio. Kundera, ele mesmo tradutor, como quase todo bom ficcionista ou poeta, não economiza na utopia nem derrapa no pragmatismo. Clama, no deserto da literatura de massa e das fórmulas feitas, pela confirmação do sonho e do engenho no amálgama perfeito. Fidelidade e arte.