Voltamos ao A hora da estrela, de Clarice Lispector. Texto que permite múltiplas reflexões sobre linguagem, literatura e tradução. Extraio dele mais alguns excertos, a fim de tecer comentários adicionais que nos inspiram o texto do heterônimo Rodrigo S. M.
A narrativa dessa obra de Lispector começa com uma longa hesitação, do próprio autor heterônimo, sobre a possibilidade de se descrever a trajetória de Macabéa; e sobre sua capacidade de fazê-lo, inclusive do ponto de vista literário. É nesse clima de indecisão que a autora reflete profundamente sobre a arte de escrever e sobre a natureza mesma da linguagem. É um texto em que ela supostamente, como estratégia literária, buscar afastar-se da “escrita difícil”, para aproximar-se da personagem e do próprio leitor por meio do heterônimo.
Escritor iniciante e vacilante, Rodrigo S. M. se questiona sobre a interseção entre o texto e a realidade: “Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? […] Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido”. Autor e leitor se confundem na tradução da realidade em escritura.
Essa tradução o faz tentar ir além do que se supunha capaz: “Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer ‘realidade’’’. O heterônimo explicita aqui o caráter tentativo de seu texto e a natureza esquiva da realidade que ele vai tentar retratar. A realidade de uma personagem que ele mesmo admite pouco conhecer, alguém que meramente vira de relance. Mas decide, enfim, dar o salto.
Obcecado pela transcrição de fatos e da realidade, nus e crus, o autor aponta uma espécie de relação unívoca entre fatos, ou coisas, e palavras. Fenômeno que simplificaria sua tarefa de tradução, mas que se revela falacioso e, no final, impraticável — o que o leva a recorrer à invenção, escorado em nada menos que um mandato divino: “Mas que ao escrever — que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar”.
A tarefa de tradução da realidade em escritura induz o autor a especular, também, sobre a natureza mesma da palavra, como instrumento crucial desse exercício: “… a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela”. A descrição de fatos nus e crus exige, conforme a concepção de Rodrigo S. M., palavras igualmente nuas e cruas, com a objetividade do substantivo descarnado e a dispensa de adjetivos inúteis: “Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem”.
Julga-se ele capaz de traduzir fielmente a realidade, com essa linguagem pura, a palavra que se parece com a palavra, a palavra que apenas reflete o fato simples, óbvio, o fado triste de Macabéa. E nessa tradução, o heterônimo conduz o leitor a acompanhar de muito perto a trajetória da personagem, narrada com o realismo que só a reprodução direta da realidade faculta: “… com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto”.
A hesitação do autor, embora não desapareça de todo, é vencida por algo que o move em direção ao texto. E esse algo tem um potente elemento linguístico, que o heterônimo explicita dessa forma: “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de ‘força maior’”.
Rodrigo S. M. convida o leitor a segui-lo nessa viagem, ainda que se trate de “livro inacabado porque lhe falta a resposta”. Mas esse desafio é lá do leitor.