Na tradução, ocupar espaços da experiência humana. Ali na brecha tensa entre texto-no-papel e texto-na-mente. Só um lapso, um átimo para a reação: primeiro ensaio de uma das tantas formas de compreender. Preencher as lacunas da incompreensão, ocupando espaços com a forma mais pura de tradução. Criatividade.
Não seria, talvez, como tirar leite de pedra? Sugar a seiva do mais seco dos esqueletos: a letra oca de sentido ali estirada no papel, à espera não de um sopro de vida, mas de alguém que dela extraia o que não mais se supõe ali haver. Ai do tradutor que disso não for capaz.
Mas não abusar da invenção, não. E são tantas e tão variadas, fascinantes as tentações. Desviar de disparates disparados contra o vernáculo. Preservar esse fano sagrado, essa pátria, como se fosse o pouco que nos resta. Evitar o efeito fácil de enfeitar sentidos com a pretensão de imprimir o selo do literário. Descartar as densas camadas de frases inúteis, que se acumulam, texto sobre texto, como que interpolando paráfrases para explicar o que deve ser apenas sugerido (haveria pior maneira de estiolar o literário?). Negociar, com sagaz sutileza, o discutível direito da intervenção direta no texto. Não, não traduzir para malinar, como que malversando sentidos.
Faze o que te digo, não o que faço. Atento o tradutor.
Fazer o quê, exatamente? Se nada vive sob o texto. A letra tão morta, mais que morta. Resíduos esparsos em campo deserto. Os sentidos apagados. Meros fantasmas de pensamentos, outrora originais. Ainda assim, é como se bastasse só uma centelha. Nem brasa já é, mas basta a réstia de fugacíssima faísca. Todo um incêndio latente, a mais intensa luminosidade, aguarda os olhos e a mente do tradutor.
Não é só o que o aguarda no papel, tradutor, que poderá produzir um texto novo. No papel, garranchos ininteligíveis, ou quase. Que sentidos fazer de tudo isso? Há que projetar luz ali. A exterioridade se expressa, e forte, sobre massa quase disforme. O que vem de fora do texto, sobre o texto, reagindo com ele, catalisando a formação de uma narrativa atual. A exterioridade prevalecendo, enfim, irresistível. Toda a força do novo arrastando o original para o mais fundo passado.
Medir o longo texto com régua nova, talvez. Não a régua-transferidor, o olhar meramente mecânico, reprodutor, mas o instrumento que determina a extensão dos significados, quiçá também sua profundidade. Determina os sentidos mais centrais de cada palavra, mas também sua projeção para longe do núcleo. Nesses voos, ocupar certos espaços da experiência humana. Trabalho de artesão que dignifica esse velho ofício-arte, tradução.
Que mais aguarda o tradutor sob esse texto? A luz sombria, o espectro do que animou o momento criativo do original? A noite que desce sobre o texto, a inevitável confusão — senão de línguas, de sentidos — que se espalha por todas as suas linhas, parágrafos, páginas e páginas. A eclosão — intensa luz — de Pentecostes depois da longa noite de Babel?
Mas que seria de Pentecostes sem Babel? Não foi a confusão que tornou necessária a tradução? Não foi isso que lhe deu vida e sentido? Se os sentidos não se tivessem extraviado, corruptos, por que alguém pensaria em procurá-los, identificá-los, retificá-los, determiná-los, definir suas medidas, sua extensão e profundidade?
Estaria aí mais uma descrição da tarefa do tradutor? Falar em línguas para que todos, enfim, entendam o verbo?