Com toda a onda que se formou em torno da poesia de Leminski, talvez valha a pena recuperar faceta sua menos conhecida. A de tradutor. Já tive oportunidade de tratar do tema, neste mesmo espaço, alguns anos atrás. Foi talvez faceta menor do escritor curitibano. Mas vale notar que publicou pelo menos nove livros traduzidos, de línguas originais tão diversas quanto latim, inglês, francês e japonês.
Não foi tradutor “comum”, tanto pelo número de línguas de que traduziu quanto pela energia que incutia no texto final. Não li todas as traduções de Leminski, mas apenas três delas: Sol e aço, de Mishima, Satyricon, de Petrônio, e Malone morre, de Beckett.
As traduções de Leminski — pelo menos as que li — surpreendem positivamente pela contundência do texto, pela coloquialidade e pela ligeireza que — se pode supor — foram adicionadas, em alguma medida, pelo tradutor.
Leminski cria ser a tradução a alternativa de transformar o texto em algo (ainda) mais rico, mais raro, mais forte, mais radioativo. Cria, também, ser a tradução apenas pelo sentido — amparada, aliás, em pesada tradição — a pior das traições.
Em Satirycon, as marcas da coloquialidade — que, muitas vezes, parecem deslocadas em texto tão antigo — são mais fortes. Ditadas, talvez, pela própria natureza do original. Os exemplos são infindáveis, o que faz da tradução de Leminski texto impagável — recuperando, possivelmente, o frescor do original de dois mil anos.
No Malone morre leminskiano, tampouco faltam exemplos de flexibilidades. As liberdades que Leminski se concedia são por demais evidentes para passarem despercebidas. Licenças poéticas de um poeta-tradutor.
Como bom poeta, Leminski não abria mão de transformar poesia em poesia; não traduzia poema em texto raso. Não é justo citar frases ou versos ao léu, arrancados do contexto. Mas exemplos valem.
O original francês “Voici la riante saison/ Le doux mois des nids et des roses/ Le soleil brille à l’horizon/ Et vos portes ne sont plus closes/ Fêtons le gai printemps/ Fêtons”, em Malone morre, virou, assim, “Prima prima primavera/ Céu e sol é ninho é flor/ Aleluia Cristo é rei/ Seja seja onde for”. Em outro exemplo, “Poupée Pompette et vieux bébé/ C’est l’amour qui nous unit/ Au terme d’une longue vie/ Qui ne fut pas toujours gaie/ C’est vrai Pas toujours gaie” se torna “Bonequinha Chupa-Chupa/ Velho bebê peludo/ O amor nos uniu/ Antes do fim de tudo”.
Para quem acha que Leminski não foi lá muito fiel em sua tradução, convém ler as traduções do próprio Beckett para o inglês:
“Oh the jolly jolly spring/ Blue and sun and nests and flowers/ Alleluiah Christ is King/ Oh the happy happy hours/ Oh the jolly jolly”; e “Hairy Mac and Sucky Molly/ In the ending days and nights/ Of unending melancholy/ Love it is at last unites”.
Difícil, de fato, saber quem foi mais “infiel”.
No caso de Leminski, fica claro que se baseou nos dois “originais” — pode-se acusá-lo de dupla infidelidade?
Em Leminski — mas também no próprio Beckett —, lêem-se as marcas do impulso da criação e do desapego à letra do original. No final, quanto se perdeu e quanto se ganhou? Pouco importa, talvez. Para Leminski, todo tradutor de poesia sabe que está diante de um trabalho impossível. Diante da impossibilidade, o desvio ou a raiva. A raiva que se expressa em violência, agressão, brutalidade. O desvio que, diante do impossível, parece sempre justificável. Desvio que é o rumo, afinal, de toda tradução.