Continuo, aqui, a tecer comentários sobre A montanha mágica, de Thomas Mann. Na última coluna, mencionei a tradução para o português de Herbert Caro, com revisão de Paulo Astor Soethe. Agora, extraio algumas reflexões da tradução para o francês (1956, Guilde du Livre) realizada por Maurice Betz, com prefácio de Jacques Mercanton.
Traduzir A montanha mágica não é um exercício fácil, em razão de diversas características da obra, incluindo a extrema meticulosidade das descrições das cenas, a riqueza de referências culturais e o uso de elementos filosóficos que dão complexidade adicional ao texto.
A tradução de Maurice Betz foi a primeira para o francês, o que, se lhe dá a primazia, também lhe impõe o risco de cruzar uma nova fronteira, naturalmente abrindo o flanco a críticas diversas e a correções posteriores.
O teórico da tradução Antoine Berman destaca, sobre a trabalho de Betz, que o tradutor francês conseguiu manter, pelo menos em parte, a “heteroglossia” (diversidade das línguas) encontrada no original de Mann, em particular nos diálogos do protagonista Hans Castorp com sua amada Clawdia Chauchat. Berman aponta que Betz conseguiu articular e diferenciar, na tradução, as modalidades de francês usadas, como língua estrangeira, pelo alemão Castorp e a russa Chauchat — tudo isso na moldura proposta pelo texto francês formulado pelo tradutor. Resume Berman que Betz conseguiu, ao mesmo tempo, transparecer o alemão de Thomas Mann e distinguir as três tonalidades de francês, cada qual com suas características estrangeiras peculiares.
Do ponto de vista gráfico, o texto que originalmente aparece em francês (ou outra língua estrangeira) na obra de Mann é composto em itálico na tradução de Betz. Essa peculiaridade, destacada pela única nota do tradutor, ao final do livro, ajuda o leitor a compreender e interpretar o comentário de Berman.
Dos vários elementos instigantes do romance, trago dois à atenção do leitor. O primeiro é a fabulação sobre o tempo — as diversas maneiras de percebê-lo, de sentir sua passagem, segundo as circunstâncias pessoais e as injunções coletivas. A incapacidade do ser humano de medir a passagem do tempo por si mesmo, sem instrumentos, leva a percepções momentâneas e pessoais bastante distintas. Esse fato se revela claramente no romance, de maneiras diversas, mas em particular na técnica literária empregada pelo autor, que estende desproporcionalmente a narração do primeiro ano de Castorp no sanatório, enquanto os seis anos seguintes são relativamente condensados. É uma forma de mostrar como a lenta adaptação do protagonista ao sanatório é sucedida pelo rápido avanço da rotina. Eis aqui também uma forma de tradução: o tempo (lento ou rápido) desdobrando-se em espaço (maior ou menor).
O segundo é a tradução da vida na montanha, que os pacientes tentam transmitir, sem muito sucesso, aos visitantes forasteiros, gente da planície. Esse esforço imperfeito de tradução nota-se em especial no protagonista Castorp, ao longo de sua transformação de visitante em paciente; e de paciente impaciente em paciente conformado e satisfeito. Cria-se no sanatório da montanha mágica uma comunidade — enferma, rica e ociosa — que desenvolve hábitos e concepções próprias. Próprias a ponto de dificultar sua interpretação pelos forasteiros — assim como sua explicação por parte dos membros da comunidade.
A magia da montanha reside justamente nessa transformação que opera em seus hóspedes, gerando uma nova forma de perceber o tempo e enxergar a realidade. Como assinala o narrador perto do fim do romance, um objeto verdadeiramente “significativo” é aquele que transcende seu sentido imediato, expressando algo de alcance mais geral e sutil, expressando um conjunto de sentimentos e pensamentos que nele encontram seu símbolo mais ou menos perfeito. Essa é a montanha mágica de Thomas Mann.