A tradução de uma obra monumental, como A montanha mágica, de Thomas Mann, é sempre uma tarefa delicada. A supervisão da crítica literária é mais atenta; e o respeito mesmo por um clássico exige máximo cuidado do tradutor. Comento aqui, especificamente, a tradução da obra alemã para o português brasileiro realizada por Herbert Caro, com revisão e posfácio de Paulo Astor Soethe (Companhia das Letras, 2016).
Essa tradução para o português tem a característica especial de ter sido revisada após 60 anos. Não se tratou de uma mera revisão formal, segundo Soethe nos informa no posfácio, mas de uma “reescritura”, inclusive em razão “das mudanças no português brasileiro e sobretudo em face dos resultados e consensos da pesquisa especializada das últimas décadas”. O resultado seria um Thomas Mann “alemão e brasileiro, agora ainda mais mestiço”.
Abro aqui um parêntese para relembrar que o autor era ele mesmo “mestiço”, filho de brasileira e alemão, fato que dá à frase de Soethe agudo significado adicional.
A revisão da tradução de Caro se justifica não apenas pelo longo tempo desde sua primeira edição, e das já mencionadas mudanças dinâmicas na língua de chegada, mas também porque o tradutor, falante nativo de alemão, havia aprendido português já adulto — elemento que implicou escolhas e características específicas em sua tradução, inclusive no tocante aos tempos verbais, aspecto que Soethe destaca em seu posfácio.
Soethe aponta que um dos elementos fundamentais de sua revisão foi realçar “o cultivo da ambivalência como produto e matéria literária de um pensamento movido por forças opostas”. Um dos componentes dessa ambivalência, proposta pelo revisor, parece situar-se naquilo que chamou de embate entre o original, as escolhas do tradutor e as alterações impostas por Soethe, gerando “nova usina de sentidos, dinâmica e disposta a integrar a cena literária e intelectual no Brasil contemporâneo”.
Esse mesmo processo, de confluência de textos diversos (original, tradução, revisão e fortuna crítica, entre outros), implica o que o revisor chama de “despersonalização da escrita” — fenômeno que, segundo o mesmo Soethe, estaria em linha com a escritura de Thomas Mann, ela mesma caracterizada “pela incorporação literária de textos, figurações e motivos alheios”.
Quando lemos a revisão de Soethe, então, estamos diante de um texto que passou por múltiplas edições e traduções, escrito compósito que bem exemplifica o processo que rege a navegação dos textos ao longo dos séculos: uma interminável sucessão de diferentes versões. Um texto que, como bem sintetiza o revisor, passou por várias mãos antes de pousar nas do leitor. E aqui não se trata apenas das mãos que o escreveram, traduziram ou revisaram, mas também daquelas numerosas que o comentaram, contribuindo para sua interpretação.
Diante de um texto vário, especialmente vário no caso de A montanha mágica, qual deveria ser a atitude do leitor? O próprio Mann dá a dica, segundo lemos no posfácio do revisor: há que o ler duas vezes, pois a segunda “propicia que o prazer do leitor se eleve e se aprofunde”. Grande desafio, por sinal, levando em conta a longa extensão do livro; mas instrumental em termos de aperfeiçoamento da interpretação do texto.
A sugestão do autor incute uma recomendação, claro, aos tradutores: haveria que percorrer o original mais de uma vez para apreender suas múltiplas possibilidades de interpretação e, com isso, ser capaz de produzir uma versão mais ampla, que melhor valorize o texto primário. Algo que bem se coaduna com o conceito mencionado acima de “cultivo da ambivalência” — que aqui poderíamos elevar à multivalência.