Machado de Assis tradutor: outra face do bruxo

O mercado editorial brasileiro tem dado mais atenção, ultimamente, a esse fenômeno literário chamado tradução. Bons livros vêm sendo publicados sobre o tema
Machado de Assis
01/04/2005

O mercado editorial brasileiro tem dado mais atenção, ultimamente, a esse fenômeno literário chamado tradução. Bons livros vêm sendo publicados sobre o tema. Exemplo disso é Para traduzir o século XIX: Machado de Assis (Annablume/Academia Brasileira de Letras, 2004). O título desperta curiosidade por trazer o nome do velho Bruxo do Cosme Velho. Afinal, o que Machado tem a ver com tradução?

Eliane Fernanda Cunha Ferreira, a autora, garimpa a “teoria” tradutória que norteava não apenas a prática da tradução, mas a própria escritura desse grande ficcionista do século retrasado. Machado traduziu com certa regularidade, produziu reflexões relevantes sobre esse ofício e ampliou assim o “pecúlio cultural” — conceito-chave na tessitura do texto de Ferreira — da literatura e da tradução brasileiras.

Machado de Assis traduziu. Foram, segundo a pesquisa da autora de Para traduzir, quarenta e oito textos, abrangendo poesia, romance, teatro, ensaio. Principalmente teatro e poesia. Machado também foi parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro, onde opinava sobre peças traduzidas. E opiniões fortes tinha o velho bruxo. “O tradutor dramático”, dizia ele, é uma “espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha”.

A frase, que se soma ao vasto folclore metafórico produzido sobre a tradução, diz muito da imagem que o autor carioca tinha de boa parte dos tradutores contemporâneos de teatro. Mas não retiremos a sentença do contexto. Machado se referia ao trabalho que mal e porcamente faziam os aventureiros ao traduzir peças para empresários teatrais famintos de lucro fácil. Não era, certamente, um veredicto sobre o tradutor dramático, papel que ele mesmo desempenhou, muito menos sobre o ofício da tradução em geral.

Machado de Assis traduziu muito teatro. E para não se tornar mais um “criado de servir”, o autor parecia se basear em dois princípios basilares: cuidado na expressão do vernáculo e sensibilidade na versão do drama para a cultura local. Em duas palavras: correção e criatividade.

M.A. não era servil. Sua “teoria tradutória” mais se aproximaria, segundo Eliane Ferreira, dos atuais pensadores pós-modernos, que advogam a soberania do tradutor diante do original. O texto de partida, para Machado, era guia e inspiração, mas não mero trilho condutor-inibidor. No dizer da autora, ele “se permitia algumas liberdades”.

O fazer tradutório de M.A. representa bem o papel inseminador que tem a tradução na relação entre culturas. O “pecúlio cultural” local se avoluma com a transposição de obras de outra língua. No dizer da autora, a tradução funciona, hoje e no século 19 de Machado, como veículo de modernização cultural. A apropriação da literatura e da língua do outro, numa operação que combina doses bem temperadas de empatia e ousadia, resulta no enriquecimento do ambiente literário local.

O livro de Eliane Ferreira, embora não seja o primeiro a enfocar o Machado de Assis tradutor, é pioneiro ao fazê-lo em texto de maior fôlego e de pretensões mais arrojadas. São duas lacunas que se cobrem, pelo menos em parte: a de se ter escrito ainda tão pouco sobre a face tradutora dos grandes protagonistas da literatura brasileira e a de trazer o tema da tradução da literatura para o plano dianteiro da cena cultural.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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