Lembranças, reminiscências como traduções

Mirando a repetição, a tradução opera como memória de um texto perdido
01/11/2012

Mirando a repetição, a tradução opera como memória de um texto perdido. Perdido não na mente do autor — que, vivo ou morto, a quem importa? — mas na voragem da tela ou do papel. Irrecuperável como era antes — quantas vezes terei de dizê-lo? — o texto só sobrevive como memória, lembranças que podem sugerir, mas que não perfazem o que significou o original.

Traduzir é, de certa forma, lembrar o que um dia se escreveu e se esqueceu. Que remédio há para o esquecimento que surge, como fagulha da dissolução, tão logo o texto é terminado? Ou pior, que surge no momento mesmo em que é, pouco a pouco, construído? Lembranças, memórias, sempre vêm com lacunas e acréscimos. Nunca perfeitas. O que não quer dizer que não possam superar o vivido. De fato, não raro as lembranças melhoram o fato passado — suavizam, dão um toque romântico, apagam arestas. Isso tudo que estamos cansados de saber e viver.

O tradutor, memorialista, figura como aquele que mergulha na alma do outro em busca de lembranças perfeitas. Trabalho de esquadrinhamento: rastrear letras, palavras, palmo a palmo, a fim de recuperar o que o texto certamente não foi. Mas poderia ter sido, estivera ele a escrevê-lo agora, originalmente, do nada.

Trabalha duplamente contra o tempo, o tradutor. Sempre curto o prazo que se lhe concede. Mesmo quando é ele próprio que o concede. Mas ainda pior é o tempo que maltrata o texto, borrando referências, apagando rastros, separando os sentidos das palavras. Ansiedade dupla, amigo.

Memória viva de um texto, a tradução não apenas vivifica, mas, claro, modifica. Como nossas lembranças. Retalhos de realidade. Coalhadas de imprecisões — além das já mencionadas lacunas e adições. Material evanescente, que pede tintas mais fortes, cores mais vivas. Sejamos otimistas: a tradução acima de tudo vivifica, ao dar texto novo ao leitor — mesmo, ou principalmente, àquele que já conhecia o original. Novo olhar sobre a tapeçaria cujas fibras já parecem algo gastas — as cores desfalecendo por fora, ainda em brasa no lado interno. Implorando restauração por mãos hábeis. Quando virão?

Quando chega o tradutor, que resolve. Tem que resolver. Não importam as dimensões dos problemas. O tempo lhe cobra. O texto será, de alguma maneira, devolvido ao leitor. Não será o original, mas suas memórias. Lembranças reavivadas — reganhando colorido forte.

De cor, de memória. Assim era a tradução antes do texto. Quando era apenas o verbo, quando a corrupção não nos havia ainda mergulhado nas trevas do texto, declamava-se e se traduzia de memória. Só de cor, integralmente oral. Não existia outro suporte além da memória — que, exigida ao extremo, dava seus melhores frutos. (Não, claro, sem imprimir suas marcas mais evidentes: lacunas, imprecisões e aditamentos.)

Tradutor como memória persistente do texto. Reminiscências amorfas fixadas — não sem alguma criatividade e desassombro — em letra dura. Na dura tela do papel. Persiste o tradutor em sua faina — persiste o texto em sua tradução.

Vivifica, como lembrança enfática que parece trazer de volta o passado como ele era. Traz de volta o passado, de fato. Vence o tempo. Vence a morte. Quem sabe a morte vença, o tempo vença. Lança, assim mesmo, o desafio ao futuro — aos próximos leitores e tradutores.

O autor, encolhido diante das liberdades que toma seu texto. Entre atônito e embevecido, admira, boquiaberto, as percepções que sua cria desperta. Criou asas, deu outras crias. E ele que nunca pensara aquilo, pelo menos não conscientemente. Ou será que pensara, de fato, mas sua memória — e não o tradutor — o estaria traindo?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho