Na coluna anterior, dedicada a Platão, tratei de vínculos existentes ou supostos entre os pares fala e escrita, realidade e linguagem. São temas de crucial importância para o entendimento do fenômeno da tradução, seja qual for o ponto de vista teórico de que se parta.
Volto ao tema aqui, mas agora com base em reflexões fundamentadas em obra de Paulo Freire, A importância do ato de ler. O livro, constituído por três artigos, trata de questões atinentes à alfabetização e ao ensino, tendo como referência a leitura — leitura em sentido amplo.
A leitura, obviamente, é um dos processos críticos no ato de tradução. Sem a compreensão-decifração primeira do texto, não se pode sequer pensar em traduzi-lo para outra língua. E essa compreensão não se pode basear apenas no texto, pois a decodificação de sinais gráficos não é suficiente para revelar o sentido ali contido. Paulo Freire trabalha com maestria esses conceitos.
Na análise do educador brasileiro, a “compreensão crítica do ato de ler […] não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas […] se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”. Essa decifração depende de um contexto construído no passado, que se revela na experiência acumulada de uma sociedade, em dado intervalo de tempo; e se projeta no futuro, ao ajudar a moldar e consolidar elementos que farão parte de novos contextos.
No dizer de Paulo Freire, “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”.
A contextualização da palavra deve preceder sua compreensão, viabilizando, em passo posterior, sua versão em outra língua ou outro sistema de signos. Algo que pode parecer óbvio, mas que precisa ser continuamente repetido, lembrado e, acima de tudo — em se tratando de tradução — praticado. Simplesmente não se consegue traduzir partindo apenas do texto; e, quando se lê um texto produzido dessa forma, são gritantes as imperfeições — quando não se notam verdadeiros absurdos.
Freire comenta que os vínculos entre linguagem e realidade são não apenas concretos — descartando ele, portanto, qualquer aceno a uma excessiva relativização —, mas dinâmicos, implicando constante movimento de adaptação, redirecionamento e recomposição. Movimento que aponta para uma atitude de incansável leitura e releitura, de exame e reexame desses vínculos.
A narrativa de Paulo Freire relativa à construção do texto sobre o ato de ler é também interessante por examinar os limites da memória e da reelaboração da história — no caso, sua história pessoal e sua relação com a leitura do texto e do mundo. É instigante a maneira poética como Freire apresenta sua relação com o texto e a palavra, frente à realidade percebida.
Nota-se todo um processo de tradução do mundo que o cercava – envolvendo elementos da natureza, pessoas de sua relação, as diferentes emoções e sensações e a linguagem propriamente dita — em “textos” e “palavras”, que iam pouco a pouco constituindo sua leitura do ambiente.
A passagem da leitura do mundo para a leitura de textos escritos, na escola, é também abordada por Freire, em tom de emotivas reminiscências. O educador contrasta a leitura intuitiva, numa fase ainda pré-alfabetização, com a leitura “mecânica” na escola formal, para passar então a defender a tese da necessidade da leitura crítica — ou seja, mais contextualizada e refletida. Algo que, novamente, nos remete à forma ideal de traduzir.
A tradução, quando realizada de maneira responsável, ponderada e meticulosa, é ela mesma uma leitura crítica do texto.