Jacques Derrida e algumas idéias sobre tradução

Jacques Derrida, morto recentemente, deu importante contribuição aos estudos da tradução
Jacques Derrida
01/11/2004

Jacques Derrida, morto recentemente, deu importante contribuição aos estudos da tradução. A força de seu pensamento gerou, em seu rastro, dezenas de artigos, ensaios e livros que tentam entender o fenômeno da tradução, especialmente da literária. O propositor da “desconstrução”, ao lado de seus colegas pós-modernos, inspirou toda uma linha teórica que enxerga a tradução não mais como repetição, mas como análise — análise de infindáveis possibilidades.

De fato, não só como análise, mas também como crítica. A tradução tem forte aspecto crítico, e a tradução literária, especialmente, pode ser encarada como um capítulo da crítica literária, ou como uma atividade que, necessariamente, se nutre da crítica e com ela colabora.

A tradução, encarada não como ordenamento em outro ambiente sintático de idéias preestabelecidas, mas como processo de desconstrução, ganha em encanto e apelo. Perde relevo seu lado mecânico, enfatizando-se o processo criativo. A desconstrução pode ser resumida no conceito de “divisibilidade” —num processo em que não se encontra, no fundo, um átomo indivisível. Do mesmo modo, a tradução também se apóia fortemente nesse conceito de divisibilidade infinita. Dividir para entender — dividir para explicar e para sugerir.

No ambiente literário, o jogo de possibilidades e ambigüidades tem peso incalculável. Talvez seja essa, de fato, uma definição de “literário” — o texto que se abre, com máxima satisfação, ao jogo das possibilidades. O trabalho de análise — e, portanto, divisão — entra como fase preparatória para uma remontagem igualmente prenhe de possibilidades. Boa é a tradução que mantém aberto esse jogo. Tradução não pode ter a ver com simplificação — trata-se, ao contrário, de manter as complexidades.

A tradução que simplifica também empobrece. A riqueza de detalhes de um texto literário exige que permaneçam abertos os variados canais pelos quais deverão escorrer os pensamentos do leitor. Claro, não é tarefa fácil. Mais fácil é ensaiar o papel de “guia” — aquele que orienta, mas que também embota e castra.

A idéia de uma operação tão complexa como essa — a tradução assim concebida — não pode deixar de sugerir uma impossibilidade prática. A tradução só persiste por ser necessária. São dois conceitos intimamente ligados ao ato tradutório — necessidade e impossibilidade. A necessidade que se revela como impossibilidade, diria Derrida.

A tradução é uma operação que se faz sem garantias — não há garantia de correção, de adequação, sequer de possibilidade. Há parâmetros, mas não pedra de toque. Faz-se por pura necessidade. Fosse um negócio, não se acharia fácil um fiador.

Só quem se aventura nessa seara é que sente, em cada frase, o abismo das possibilidades. A infinitude da divisibilidade. A dificuldade na remontagem de todo um arsenal de complexidades. No fim, a aferição será sempre falha — mas necessária, como palavra do crítico.

Derrida jogou como ninguém com o aparente desregramento do ato tradutório, explorando o processo como análise. Partindo da filosofia, chegou à tradução como âmago da própria filosofia: “a origem da filosofia é a tradução ou a tese da traduzibilidade”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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