O título remete a um artigo publicado em 1999 por Marie-Claire Pasquier, anglicista francesa. Mas por que falar da relação entre Victor Hugo e a tradução? Se sequer foi tradutor? Porque escreveu e pensou sobre a tradução. Acima de tudo, muito a valorizava, como ferramenta de múltiplas utilidades.
Outro artigo, do linguista e tradutor francês Henri Meschonnic, publicado 20 anos antes do primeiro, trata do que Victor Hugo disse sobre a língua. E também sobre a tradução.
Nos dois artigos, encontramos riqueza de reflexão sobre a tradução, a evolução das línguas e a relação entre a língua e o pensamento.
Victor Hugo avaliou e classificou traduções e tradutores. Diferenciava o “tradutor verdadeiro”, portador de missão criadora e da própria autoridade, do “meio tradutor”, aquele que atua como iniciador de um trabalho inacabado. Comparava o tradutor ao escritor, apontando o papel de ambos no processo de evolução da língua: para Hugo, os grandes escritores enriquecem as línguas; enquanto os tradutores retardam seu empobrecimento.
Assim é a tradução, assim os tradutores, para Hugo: “sobrepõem os idiomas uns aos outros e, às vezes, pelo esforço que fazem para levar e esticar o sentido das palavras às acepções estrangeiras, ampliam a elasticidade da língua. Com a condição de não chegar ao ponto de ruptura, essa tradução desenvolve e enriquece o idioma”.
Victor Hugo considerava a tradução como um dos “grandes problemas da linguística”, no qual “a questão filológica não é outra coisa senão a questão metafísica”. Acima da língua, Hugo situa o espírito humano: uno na essência e diverso pela corrupção. E, nesse enredo, insere a tradução como ferramenta que nos permite buscar a unidade perdida: “os tradutores rompem essas divisórias, destroem esses compartimentos e fazem comunicarem-se entre si esses diversos espíritos humanos”. Na origem, o “Verbo” como elemento de identificação do espírito humano ao espírito divino. Daí em adiante — ou daí para baixo —, a proliferação das línguas e seu remédio, a tradução, como instrumento de revelação.
A tradução, para o escritor francês, era também processo de anexação. Assim como na guerra se podem anexar territórios pelas armas, na relação entre as línguas podem-se anexar poetas e filósofos pela tradução.
Da mesma forma, Victor Hugo sustentava então, no século 19, como hoje se faz com maior intensidade talvez, que o tradutor é impactado pelo meio em que se encontra; que o tradutor tem por colaborador seu momento histórico.
Sobre a questão da fidelidade na tradução, Hugo preconizava que o tradutor correto deveria ser “obediente” e “subordinar-se” ao original, mas também deveria exercer essa subordinação com “autoridade”. Uma submissão soberana. Daí, talvez, o personagem que elegeu como “patrono” do tradutor. Não São Jerônimo, tradutor da Vulgata. Recuando bastante no tempo — e talvez se embrenhando mais em terreno brumoso, fabuloso —, reivindica ninguém menos que Moisés. Moisés, o tradutor direto das palavras de Deus. Tradutor de um original com que nada se pode comparar, aliás.
Mas Victor Hugo compara, sim, o tradutor ao fundador de uma religião: “O que eles contemplam, o que estudam, o que traduzem, não é o Espírito, mas um espírito; não é o Verbo, mas um idioma; não é o céu, mas o livro; não é o universo com sua alma, Deus; é a obra-prima com sua alma, o poeta”. A relação entre tradução e religião é uma constante — e não só em Victor Hugo.