Quem pensa sobre tradução não pode deixar passar em brancas nuvens a morte de Haroldo de Campos. Quem traduz, quem gosta um pouco da teoria do ofício, não ignora a força de seu pensamento — independentemente de concordar com ele.
Idéias movem mundos, mas o mundo da tradução é particularmente sensível a elas. A agitação que trouxeram as traduções e reflexões sobre tradução de Haroldo Campos é notável. Como tradutor, arriscou-se em aventuras nada comportadas. Ousou encarar obras monumentais — pela extensão, pelo prestígio, pelo desafio. Traduziu Homero (Ilíada), trechos de A divina comédia, textos da Bíblia. Traduziu de línguas diversas — russo, hebraico, italiano, grego, inglês, japonês, francês —, exibindo versatilidade e, acima de tudo, tenacidade, boa obstinação.
Traduziu trechos de Finnegans Wake — então, loucura das loucuras, superada depois pela extrema ousadia de um Donaldo Schüler. Fez nome e fama como tradutor. Criou uma técnica, uma quase escola. Lançou o termo “transcriação”, embutindo criação onde muitos ainda teimam em ver somente operação mecânica. Fez e aconteceu.
Também polemizou, e muito — característica da inteligência fina e pouco afeita a enquadramentos. Teórico e crítico — estudioso da linguagem e da literatura —, não raro firmou posições rígidas e nutriu antipatias por vezes bem justificadas. Militou no rigor e colheu os frutos disso. Preconizando a inventividade como elemento central do ato tradutório, fez da imaginação livre, porém não irresponsável, a pedra de toque de qualquer tradução. Promovia uma técnica impiedosa e brutal: o devoramento do texto do outro, sem dó, sem remorso. A antropofagia modernista revivida no esforço de traduzir o inapreensível: só devorando.
A postura passiva e apaziguadora da tradução quase automática — mera substituição metódica e meticulosa de palavra por palavra — parava na valorização da diferença. Justo a diferença, a quase antítese da tradução! Traduzir com derivações e desvios nem sempre é tarefa segura. Substituir o apassivamento pelo “impulso usurpador” era a solução proposta, brado rebelde de alguém que se queria sempre criador.
Traduzir, claro, não é só isso. Não é só o glamour de traduzir a alta literatura. É sobretudo, na rotina do ato profissional e cotidiano, marretar o texto até ver surgir o palatável, às vezes o vendável. Nem sempre há espaço de sobra para o romantismo, o idealismo. Quem traduz, ou já traduziu, profissionalmente, conhece as não poucas imposições a que está sujeito.
Tampouco as grandes teorias — transcriação, tradução literal, ou o que seja — resolvem as questões práticas que qualquer texto lhe reserva a cada entrelinha. Traduzir talvez seja adotar a teoria que mais lhe traga vantagem a cada momento — numa infernal roda-viva de reviravoltas. Literal aqui, que é o que mais me serve; livre noutro trecho, que me ajuda a desatar um nó cego. Transcriando acolá — que a imaginação cai bem, quando bem dosada.
A questão é que optar pela criação será, certamente, sempre o caminho mais difícil. Daí, talvez, o grande mérito do transcriador Haroldo de Campos.
Criar sempre significa mais gasto de fosfato, mais empenho, mais estudo, mais pesquisa — e mais tempo. Daí, talvez, que o transcriador será, sempre, o tradutor bissexto, não o profissional. Só ele, o bissexto, diria que apenas os intraduzíveis merecem ser traduzidos.