Georges Mounin e os problemas teóricos da tradução

Voltar aos “clássicos” faz bem. Paradoxalmente, renova as idéias. É como uma releitura, é como a tradução da tradução
01/10/2005

Voltar aos “clássicos” faz bem. Paradoxalmente, renova as idéias. É como uma releitura, é como a tradução da tradução. Não dá para falar em livro clássico sobre tradução sem citar o lingüista francês Georges Mounin. É nome obrigatório, autor de uma das frases mais clássicas e que melhor sintetizam o paradoxo principal da tradução. A valerem os postulados da lingüística, disse Mounin, a tradução deveria ser um fenômeno impossível. Mas ela existe! E seria, talvez por isso, o escândalo da lingüística contemporânea.

Mounin, lingüista, escreveu Os problemas teóricos da tradução como cientista da linguagem. Talvez seja essa a razão principal do sucesso de sua obra. Não que fosse algo inédito. Outros usaram, também, a lingüística como ponto de partida para a análise do fenômeno tradutório. Mas talvez não com o rigor e a profundidade que Mounin empregou. Mounin excedeu. Mergulhou, lançou mão de todos os instrumentos que a lingüística, à época, lhe oferecia. E construiu uma bela obra, que ainda hoje, mais de 40 anos depois de sua conclusão, pode ser lida com a sensação da atualidade.

Mounin reconhece, porém, que a teoria — ou os problemas teóricos que ele aponta — não é exatamente algo fundamental à tradução. “A prática da tradução”, diz ele, “antecedeu toda teoria sobre a tradução e sobrevive a qualquer teoria que negue a possibilidade de traduzir”. A tradução certamente não precisa da teoria. Mas a hipótese é que a tradução, inclusive a tradução da literatura, pode ser aperfeiçoada com o concurso do estudo teórico.

Apesar de escrever com linguagem científica um texto voltado para lingüistas, Mounin tem muito a dizer sobre a tradução da literatura. O lingüista francês privilegia, em seu estudo, o aspecto cultural, ou os obstáculos culturais, à tradução. A tradução literária é basicamente uma operação que se dá entre duas culturas. A operação tradutória se faz no choque, ou na oposição, entre duas (ou mais) culturas. Não bastassem as diferenças puramente lingüísticas (estruturais, por exemplo) entre duas línguas, as divergências culturais aprofundam a dificuldade da tradução literária.

Fenômeno comum na tradução da literatura — terreno onde a beleza é fundamental — é aquilo que Mounin chama de “supertradução”. É o pecar pelo excesso, a fim de se fazer entender com perfeição, ou, ainda, a fim de emular na outra língua o efeito estético original. “O receio de não traduzir suficientemente leva a traduzir demais”, diria o autor francês. Mas esse excesso, como se sabe, pode facilmente causar o efeito inverso, deturpando o aspecto estético e provocando aquela natural sensação de enfado que trazem os casos mórbidos de verborragia. Em tradução, quase sempre, é melhor pecar pela falta. Melhor é sugerir que supertraduzir.

O grande problema da tradução da literatura é que, enquanto a linguagem busca a convergência, trabalhando no sentido da redução das diferenças, a fim de facilitar a comunicação, a literatura busca a divergência — sendo o campo por excelência das individualidades, da busca do singular e do inaudito. A tradução, como diria Mounin, não exigiria mais que a semelhança. Mas a literatura busca a singularidade, e a tradução da literatura não pode desconsiderar esse aspecto.

O consolo, que também é aquilo que instiga, é notar que a tradução é aquela tarefa que jamais estará concluída. Sempre se vai parar um passo aquém do fim. Sempre faltará o arremate. Que, provisoriamente, fica a cargo do leitor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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