Fendas da tradução

“Medo e submissão”, de Amélie Nothomb, funciona como verdadeira aula sobre diversos aspectos da tradução
Amélie Nothomb, autora de “Medo e submissão”
01/05/2025

A belga Amélie Nothomb se constituiu escritora nas fronteiras entre as línguas, incluindo principalmente o francês (língua materna) e o japonês (passou parte da infância no Japão), mas também o inglês, o latim e o grego clássico. Formou-se escritora também nas fronteiras entre culturas, em razão das experiências que acumulou nos diversos países onde viveu. Fez-se escritora, portanto, em ambiente no qual opera soberana a tradução.

Medo e submissão, um dos romances mais aclamados de Nothomb, é o relato ficcional de uma experiência real: as vicissitudes de uma belga contratada como intérprete/tradutora por uma grande empresa japonesa. O livro funciona como verdadeira aula sobre diversos aspectos da tradução, incluindo a importância não só do conhecimento da língua, mas de seus diferentes registros, e, sobretudo, de seu substrato cultural.

Cena marcante do romance, que enterra qualquer perspectiva de exercício da posição profissional inicialmente almejada pela protagonista, é aquela em que recebe a ordem de “esquecer o japonês”. Mas como esquecer uma língua que aprendera criança e que ali usava diariamente? Ou, então, como “escondê-la” atrás das outras línguas que conhecia? Fazê-lo seria eliminar qualquer possibilidade de tradução, mas parecia ser essa mesma a pretensão de seu superior, como forma de relegá-la ao rebaixamento e ao ostracismo. Amélie (a protagonista) não logrou esquecer o japonês, mas seu chefe conseguiu aviltá-la.

Escritora muito marcada pelas fissuras da tradução, Nothomb é também muito traduzida. Seus livros foram publicados em mais de 40 idiomas. Sua concepção de tradução é não literal, ou seja, acolhe de bom grado os voos do tradutor. Voos esses balizados por injunções diversas, em particular da esfera cultural.

Muito traduzida e também muito assombrada pelas frestas da tradução, Nothomb muito se verte nos próprios textos. São vários os livros em que incorpora elementos biográficos, quando não se incorpora totalmente. Mesmo sobre seu primeiro romance — Higiene do assassino —, que não contém aspectos autobiográficos explícitos, a autora declarou ser ela mesma o protagonista-escritor, Prétextat Tach.

Em cena em que a autora parece representar ao mesmo tempo o protagonista e a mulher que o entrevista, Tach/Nothomb aponta um dos aspectos mais elusivos da tradução. Na cena, o protagonista é confrontado com um dos fatos centrais do romance, o assassinato de sua prima, que apareceria apenas cifrado na fictícia ficção de Tach: “Se escrevi esse momento, foi porque era impossível dizê-lo. A escrita começa onde a fala termina, e essa passagem do indizível para o dizível é um grande mistério. A fala e a escrita se revezam e nunca se sobrepõem”.

O comentário de Tach, ainda que questionável, inclusive em razão do caráter ardiloso do personagem, nos faz refletir sobre essa difícil passagem da fala à escrita, sobre a sutil relação entre as duas, a sempre falha transposição de uma a outra, o abismo enfim que as parece separar. Passagem épica na trajetória da civilização e, por isso mesmo, gravada na tradição religiosa da humanidade. Passagem que é, na prática, uma operação tradutória complexa e até hoje esquiva e hermética.

Esse mesmo comentário de Prétextat Tach nos pode remeter, ainda que com vínculo mais frouxo, à reflexão íntima do personagem Pedro Bezukhov, de Guerra e paz, em que “uma voz” lhe dizia que a palavra dita é de prata, mas a não dita é de ouro. Recuamos aqui um passo, mas em sentido ascendente: à ideia antes da palavra. A jusante, como sabemos, temos a dissolução, no sentido da fala e da escrita… a vulgarização. O mistério revelado não tem o mesmo valor. Seria a própria morte, bem poderia dizer Tach.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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