Essa longa história de infidelidades…

Aqui mesmo neste espaço escrevi há algum tempo, citando Lêdo Ivo, que a história das traduções seria um longo desfiar de infidelidades
01/10/2004

Aqui mesmo neste espaço escrevi há algum tempo, citando Lêdo Ivo, que a história das traduções seria um longo desfiar de infidelidades. Lembrei-me disso ao tomar em mãos, e ler até com certa avidez, o livro de Lia Wyler intitulado Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Está aí uma obra interessante, tanto para tradutores quanto para quem se interessa por literatura em geral.

Não se trata, porém, daquela “história brasileira das traduções” (e das infidelidades nas traduções) de que ainda sentimos falta. O título não procura enganar ninguém a esse respeito. Trata-se, de fato, de um relato curto, mas denso, sobre a trajetória de tradutores e traduções no Brasil, desde os tempos do descobrimento. Após uma breve digressão sobre teorias tradutórias, Wyler discorre sobre o período que vai dos tradutores orais (os “línguas” do título) até as efervescências dos anos de 1970, que viram surgir as entidades classistas de tradutores.

Eis uma crônica interessante, pelas luzes que lança sobre essa atividade obscura, quase invisível. Num país que nasceu do choque de culturas e de línguas, e em que a atual língua oficial travou árdua luta para se impor diante das línguas nativas, a tradução exerceu papel de relevo. É esse relevo que Wyler traça, num trabalho bem pesquisado e de texto leve, às vezes pitoresco e instigante.

Detalhe curioso, para o qual a autora chama a atenção, é a decadência sofrida pelo tradutor na virada para o século 20. Quando os chamados “direitos autorais” começam a ganhar corpo, o tradutor — outrora tido ele mesmo como legítimo autor de suas traduções – entra a perder prestígio e status. De repente, não é mais ele o “autor” de suas traduções — passa a esconder-se atrás do nome do autor, já sem tanta autonomia para suas adaptações ou recriações. Foi um período de cerceamento da liberdade do tradutor — período que, aliás, perdura até hoje (apesar dessas vozes isoladas que clamam no deserto…).

Por essa época, Machado de Assis reclamava que o excesso de traduções embotava a verve do dramaturgo brasileiro. Ao lamentar-se, Machado acrescentou mais uma imagem às tantas que se conceberam para tentar “traduzir” o ato tradutório: para ele, o tradutor dramático era uma “espécie de criado de servir que passa, de uma sala a outra, pratos de uma cozinha estranha”.

Enquanto perdia autonomia, a atividade tradutória ganhava escala nas primeiras décadas do século 20. A explosão do mercado editorial — com epicentro na década de 1940 — impulsionou a carreira de tradutor, rendendo bons trocados inclusive a muitos escritores ilustres — dos quais o maior exemplo, sem dúvida, é Monteiro Lobato. Tradutor prolífico, Lobato via na febre de traduções que assolava (assolava?) o Brasil um fenômeno absolutamente enriquecedor para a cultura nacional. Pobre do povo (“fechado, indigente”) que não contava com esse importante expediente de buscar lá fora um pouco de fermento para sua cultura.

A obra de Wyler acrescenta um capítulo importante à bibliografia brasileira sobre traduções, e ajuda mesmo a entender a formação da literatura nacional. Mas ainda se aguarda um capítulo posterior — e este será bem mais volumoso: aquela “longa história de infidelidades” de que falava Lêdo Ivo. Esperamos com ansiedade.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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