Espinhos da tradução

As dificuldades e os desafios ao se traduzir um texto político do século 17
Armand Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu, autor de “Testamento político”
01/07/2021

A obra é o Testamento político, de Armand Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu, primeiro-ministro de Luís XIII da França entre 1628 e 1642. A primeira edição saiu em Amsterdã, em 1688, décadas após sua morte (1642). Trata-se de compilação de conselhos ao rei, elaborados com base em sua longa experiência de homem de estado.

Tive acesso a duas edições. A primeira, da Atena Editora, publicada na década de 1950; a segunda, publicada pelo Senado Federal, em 2012. Ambas têm tradução, prefácio e estudo sobre Richelieu (em posfácio/apêndice) de David Carneiro.

David Carneiro, engenheiro civil, positivista, foi professor, historiador, ensaísta, cronista e ficcionista. Também traduziu muito, como ele mesmo fez questão de registrar no prefácio à obra de Richelieu: “As traduções não me intimidaram nunca, nem constituem hoje, para mim, trabalho novo. Já publiquei livros traduzidos do francês e do inglês.” Provavelmente em razão da pobreza da minha pesquisa, não encontrei referência a mais que duas obras traduzidas por David Carneiro: além do Testamento político, apenas Viagem no interior do Brasil em 1820, de Auguste de Saint-Hilaire. Mas é bastante claro o registro, em primeira pessoa, de sua intimidade com o ofício tradutório.

E ainda assim, David Carneiro não deixou de indicar, no mesmo prefácio, a resistência e os obstáculos que enfrentou na tradução do livro do cardeal: “Foi premido pela insistência da Atena Editora que me joguei ao trabalho de tradução, e por várias vezes deixei morrer o ‘élan’ dos primeiros momentos, tais dificuldades e tais tropeços encontrei na árdua tarefa que me foi imposta”.

O prefácio é rico em informações sobre a estratégica empregada pelo historiador curitibano naquele trabalho específico e sobre sua concepção de tradução. Nota-se, em especial, a tensão que viveu entre um método literal e outro “menos literal”. Diz-nos David Carneiro: “Procurei traduzir ao pé da letra, e conservar a primitiva pontuação, os longos períodos, os pontos deslocados e mesmo as vírgulas que fecham frases, sem a sinalização conveniente […] Devo confessar também, aqui, que tentei uma tradução menos literal; mas logo abandonei o projeto porque notei que, na passagem, ia-se-me o característico da linguagem antiga, pesada algumas vezes, retórica outras, mas incisiva sempre, saindo da pena de um dos maiores políticos da evolução moderna”.

A literalidade, contudo, cobrou seu preço, e o tradutor, ao reconhecê-lo, faz a ressalva de certo exotismo lexical, que considerou inevitável: “Alguns termos parecerão estranhos em português, que estão traduzidos literalmente, por falta de palavra mais moderna correspondente. Não encontrei outro remédio senão reproduzi-los assim”.

Também se escusou pelos percalços e possíveis equívocos, aliás tão naturais em traduções, em particular no caso de textos já distantes no tempo: “Nenhum esforço […] me pareceu tão penoso nem tão eriçado de dificuldades como a tradução deste famoso testamento político. Peço desculpas, aos leitores, pelos senões. Conto com a boa vontade do julgamento, em vista dos espinhos agudíssimos de que se revestiu a galharia abundante e basta da tarefa, esse fícus indiano que me deram para fazer dele fruta civilizada, à moderna”.

A avaliação final do tradutor é positiva, apesar de todas as inúmeras dificuldades da tarefa: “Penso ter conseguido, entretanto, o meu objetivo, reproduzindo fielmente o pensamento do autor, inclusive todas as nebulosidades de algumas das suas expressões”.

Para terminar, não sem conveniente torção de sentido, uma nota de alerta do próprio Richelieu, na versão de David Carneiro, sobre “os golpes e os males que a língua produz”. Entre esses males, os espinhos agudíssimos do original, que se vão retorcendo e enrijecendo com o tempo. Todo cuidado é pouco.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho