É preciso questionar, sempre, o papel que a tradução — e a reflexão sobre essa atividade — poderia ter no âmbito da literatura. Exprimindo de outra forma: qual o papel de um texto sobre tradução num veículo dedicado à literatura e à crítica literária? Se a tradução é tida como uma espécie de trabalho copista, mecânico, então certamente nada terá que ver com literatura — termo que, claro, traz conotações de imaginação, criatividade e invento. Se, por outro lado, a tradução literária é vista como um ramo da literatura, como propôs Susan Sontag, está justificada a presença de textos sobre tradução em veículos literários.
Para considerar a tradução literária como um ramo da literatura não é necessário chegar ao extremo de colocá-la em pé de igualdade com a criação ficcional — idéia absolutamente indefensável. Mas é fato que a própria criação ficcional parte de fundamentos culturais mais ou menos reconhecíveis — idéias que flutuam em dada cultura e em dado momento histórico, e que justificam determinadas obras literárias.
Não se pode acreditar, como diria Roberto Schwarz, na mitologia da criação a partir do nada. Não existe cem por cento de criatividade, ou seja, a criatividade que invente algo a partir da mente em estado de tábula rasa. A “inspiração” mesma, cercada de ares quase transcendentais, não deixa de estar calcada nos pressupostos de uma determinada configuração cultural, no cruzamento de dadas coordenadas de espaço e tempo. A criação literária depende dessas bases materiais.
No caso da tradução, claro, a base material é muito mais sólida e presente. Mas resta, ainda, amplo espaço para o exercício da criatividade. Como afirmou o tradutor e poeta Paulo Henriques Britto, o que gera as grandes traduções é justamente a introdução do trabalho do tradutor na obra alheia. Trata-se de uma intromissão, sem dúvida, mas absolutamente necessária — tanto para o processo criativo de tradução quanto para a difusão, da melhor forma possível, da obra original.
O escritor Daniel Galera, na última edição do Rascunho, resumiu bem a questão: traduzir é quase como escrever. Pensando melhor, traduzir é escrever, sem dúvida e sem o “quase”. Mas o mesmo “quase” parece exagerado quando se entende “escrever” como “escrever literatura”, ou “escrever ficção”. Escrever literatura é, certamente, muito mais que traduzir. E traduzir é, de certo modo, escrever um determinado tipo de literatura — é um ramo da literatura.
A base que se toma quando se traduz literatura é razoavelmente consistente, especialmente quando vista de certa distância. Quanto mais o tradutor se aproxima do texto, menos sólida se torna essa base. Começam a pipocar dúvidas e problemas de todo tipo, que só um trabalho meticuloso — conjugando obstinação e inventividade — poderá solucionar.
Da tradução literária se costuma exigir muito, até demais. É preciso acertar sempre — e como é fácil achar erros em traduções! É preciso encontrar o tom exato, a rima perfeita, a equivalência completa. É preciso até mesmo, deturpando a expressão de Ezra Pound, esconder os defeitos do original.
Melhorar o original? Eis aí a grande vantagem de uma boa tradução, eis o “algo mais” que a tradução tem a oferecer. Enxergar aquilo que o autor não viu, ler o que ele não leu. Mas isso já é assunto para outro dia.