A publicação de Depois de Babel (Editora da UFPR, 2005), do francês George Steiner, é um marco na bibliografia brasileira sobre os estudos da tradução. Carlos Alberto Faraco, professor e lingüista, além de ex-reitor da UFPR, foi quem assumiu a árdua tarefa de traduzir esse clássico, para publicá-lo justamente 30 anos após a edição original.
Como crítico literário que concentrou intermitentemente seu olhar sobre a tradução, Steiner legou, em Depois de Babel, um monumento à reflexão sobre o ato tradutório e seus entranhados vínculos com a filosofia, a religião, a literatura. Legou um clássico do gênero, sem dúvida. Clássico que permaneceu à espera de tradutor para o português do Brasil por todos esses anos. A demora talvez tenha sido proporcional ao tamanho do desafio. Trata-se de um livro de fôlego: não só pela extensão, com suas 533 páginas na tradução em português, mas pela carga de erudição que adensa a leitura e transforma o ato tradutório num extenuante exercício de pesquisa e reflexão.
A edição em português certamente deverá contribuir para a rediscussão da obra de Steiner e para o próprio debate em torno da tradução. Nada melhor para isso que a tradução de um livro sobre tradução. A ironia que existe nisso não é, talvez, comum no espectro da atividade humana. Encontra paralelo na literatura sobre literatura, na ficção dentro da ficção, mas em não muitos outros campos. A tradução e a literatura conseguem curvar-se sobre si mesmas como poucas outras coisas, como num jogo de espelhos onde a imagem original se perde na profusão de reproduções.
Steiner se curva sobre a linguagem lato sensu. De fato, a obra tem por intertítulo “questões de linguagem e tradução”. São múltiplas as questões. Difícil é escolher um aspecto a abordar. O autor analisa com agudeza e brilhantismo, por exemplo, a questão da intraduzibilidade.
Eis aí um aspecto recorrente nos estudos da tradução. Nos primórdios, a intraduzibilidade teve raízes psicológicas e religiosas. A velha dúvida sobre a possibilidade, ou mesmo sobre a conveniência (do ponto de vista devocional), de traduzir a palavra revelada. Num tempo em que a literatura era quase que exclusivamente dedicada a fins religiosos, a dúvida não era de menor importância. Traduzir poderia significar não só a vulgarização, mas a deturpação e até a blasfêmia.
Em tempos mais modernos, a dúvida sobre a traduzibilidade passou a utilizar fundamentos mais racionais, seculares. Então, a questão se baseava na certeza empírica de que não havia, nem poderia haver, perfeita simetria entre as línguas. Para Steiner, ambas as dúvidas — a religiosa como a secular — partilham um fundamento comum: a crença na desvalorização que se dá na passagem de uma língua a outra. “As energias vitais, a luminosidade e a força do texto original não foram apenas diminuídas pela tradução, mas se tornaram vis”. Não é à toa que uma antiga tradição judaica registra a ocorrência de três dias de completa escuridão quando da tradução da Lei para o grego…
A tradução tem essa trajetória maldita, própria das atividades mais tipicamente ancoradas no puro e livre pensamento. Tem algo de erro desde o princípio. O próprio termo tradução, segundo nos conta George Steiner, teria nascido de um erro de interpretação. Traduzir, então, não significaria traduzir (nem sequer conduzir, transferir ou algo do gênero), mas derivar, ou induzir. O fato é banal, mas simbólico, comenta Steiner, acrescentando que, não raro, na história da tradução, uma leitura equivocada mas feliz é a origem de nova vida. De fato.