Eneida é desses livros que atravessam séculos, acumulando línguas sobre línguas em suas diferentes fases. É também desses livros que, cada vez mais, só se leem em tradução. A tradução para o português, de Carlos Alberto Nunes, é uma das mais respeitadas no Brasil. Publicada originalmente em 1981, a versão de Nunes voltou ao mercado pela Editora 34, em 2016, com organização de João Angelo Oliva Neto.
Trata-se de uma edição bilíngue caprichada, em que sobressai, além da competência do tradutor, o esmero do organizador. Nota-se que o texto não foi mera reedição do trabalho de Nunes. Pelas mãos de Oliva Neto, lemos uma tradução melhorada, na qual o organizador, cotejando edições anteriores do texto de Nunes com o manuscrito do tradutor e, claro, com originais latinos de Virgílio, procurou “corrigir os erros de diagramação, a troca de palavras, a supressão de versos, a duplicidade de grafia de certos nomes e alguns lapsos do próprio tradutor”.
A edição conta com numerosas notas do organizador, que funcionam como útil apoio à leitura e que, em alguns casos, traduzem a tradução de Nunes — artifício, aliás, muito bem-vindo num texto de caráter marcadamente erudito, com incontáveis remissões históricas e mitológicas, além de exibir léxico de sabor não raro arcaico.
A Eneida da Editora 34 também traz longo e interessante ensaio introdutório composto pelo organizador. Além de discorrer sobre a obra original de Virgílio, incluindo dados sobre sua trajetória histórica, Oliva Neto se detém demoradamente na análise da tradução de Nunes, incluindo informações sobre metrificação, ritmo e escolha vocabular. O organizador ainda menciona, para efeitos de comparação, estratégias adotadas por outros tradutores brasileiros de obras clássicas, em especial Haroldo de Campos e Odorico Mendes; e comenta brevemente as demais traduções para o português — integrais e em verso — da obra magna da poesia latina.
Oliva Neto comenta, ainda, as correções e ajustes à tradução que aponta nas notas, em particular no tocante a omissões e acréscimos encontrados nos versos de Nunes em razão das necessidades impostas pelo metro escolhido (dezesseis sílabas poéticas).
No mesmo ensaio introdutório, o organizador encontra espaço para refletir sobre a tradução em geral, em conexão com a figura de Virgílio e a força histórico-literária de sua obra. Oliva Neto assevera que a tradução “complementarmente [à imitação dos gêneros poéticos] explicita a importância de um autor e de uma obra específica nas várias épocas em que foi traduzida: tradução é a profissão de fé poética no autor traduzido”.
A tradução é, de fato, índice importante na aferição da relevância relativa de um autor ou de uma obra, ao revelar a atenção que atrai de diferentes comunidades literárias ao redor do mundo e ao longo das eras. A qualidade da tradução, por seu turno, configura outro índice significativo, ao apontar o nível de recursos que o editor, lastreado em interesses literários, culturais e econômicos, julga merecer o texto a ser vertido.
Eneida atravessou terras e mares no decorrer de mais de 20 séculos. A trajetória desse poema épico chega a rivalizar, em peripécias, com a aventura épica do herói troiano-latino. Parte fundamental dessa epopeia textual se deve a suas tantas traduções, em tantas línguas, em tantas fases de cada língua. Prodígio a que se deve dar sentido propício, como o fez acertadamente, em pleno mar e diante da guerra, o próprio Eneias.