Qualquer tradutor, consciente ou inconscientemente, é levado a adotar uma de duas estratégias em seu ofício. Nem sempre há coerência, persistência em uma mesma estratégia ao longo de todo um texto. Mas os dois caminhos sempre se cruzam, a cada fim de linha, a cada novo parágrafo. Abrem-se em encruzilhada diante do tradutor: à direita, toma-se o rumo da naturalização; à esquerda, a rota da estrangeirização.
Outro dia, amigo meu, ao ler uma de minhas traduções, provocou-me sobre esse ponto. Leitor perspicaz, entrevia outro texto sob a tradução. É sempre perigoso pressionar um tradutor — perigoso para o tradutor, claro —, obrigando-o a revelar sua estratégia, sua maneira de traduzir, forçando-o a explicitá-la e a explicar-se. Sempre há o risco da falta de coerência, que se percebe no texto, especialmente aquele produzido a soldo, por ofício, como ganha-pão (como foi o caso).
A provocação provocou um autoquestionamento difícil de resolver passados tantos anos. Verifiquei nos originais (da tradução) que ainda tenho no computador: última alteração do documento em 12 de setembro de 1997. Quase onze anos. Já não me lembrava de quase nada. Algo do conteúdo do livro, quase nada sobre a “estratégia” empregada então.
Mas há uma estratégia “default”: a (tentativa de) naturalização. Essa é a estratégia natural do tradutor. Tentar aproximar, por meio da naturalização (ou “domesticação”), o texto original do leitor, e não — estratégia oposta — levar o leitor até o autor do original. Isso porque o encontro entre leitor e autor do original sempre provocará algum estranhamento. O natural estranhamento — quem sabe voem algumas faíscas — que nasce do encontro entre culturas, épocas, regiões diferentes.
Mais fácil, para todos (especialmente para o leitor médio e, portanto, para “vender”), é naturalizar o texto — torná-lo nosso, nacional, vernáculo, fluente. Texto que se lê todo dia, na nossa língua. Fácil para todos, menos para o tradutor. Para este, qualquer estratégia — se perseguida com seriedade — será árdua e repleta de percalços. Naturalizar exige grande versatilidade e sensibilidade para o “jeito” da língua de chegada. Não é qualquer um que escreve algo que, soando natural, seja ao mesmo tempo correto e elegante — para não dizer “literário”.
Estrangeirizar é sempre uma estratégia arriscada, quando consciente. Há nobreza em topar o risco. Algumas das piores traduções são “estrangeirizantes”, mas por motivos menos nobres. Não se trata do tradutor que foi a fundo na pesquisa das estruturas comparadas das duas línguas, a fim de produzir um texto que, soando estrangeirizado, se revelasse também original — mais ainda que o próprio. Trata-se do profissional ruim e mal pago, que, na pressa, dedicou-se a tirar decalques bizarros do original — produzindo um mutante disforme dificilmente assimilável. Seja como for, são casos mais raros — o excelente (ou pelo menos “original”) e o muito ruim. Entre as margens extremas, medeia um largo rio de traduções naturalizantes, de qualidades variadas e cores cambiantes.
Mesmo diante do “default”, a encruzilhada espreita a cada letra. Haja coerência para persistir conscientemente na mesma estratégia da primeira à última página. A influência do original, inclusive de sua estrutura, de seu léxico e de sua capacidade de sugestão de imagens, é sempre tremenda. Decalques se revelam aqui e ali; insinua-se, num fim de frase, a ponta de uma estrutura sintática. O tradutor, em sua proverbial falibilidade, sempre deixa arestas. O leitor que as apare.