Em defesa de uma análise objetiva da tradução

Eis um dos temas mais apaixonantes para quem se debruça sobre a tradução e seu estudo: a possibilidade de análise concreta, racional, objetiva de uma tradução
01/12/2006

Eis um dos temas mais apaixonantes para quem se debruça sobre a tradução e seu estudo: a possibilidade de análise concreta, racional, objetiva de uma tradução. Trata-se de questão absolutamente essencial à crítica da tradução. Se não é possível fazê-lo, tudo o que se investe em criticar um texto traduzido é gasto em vão.

Um dos inúmeros símiles que já se concebeu acerca da tradução a compara com o lado avesso de uma tapeçaria, no qual as figuras são obscurecidas pelo trançado dos fios. No entanto, o mesmo símile traz embutida uma outra reflexão: o lado avesso nos permite perceber com maior clareza como a peça foi tecida; nos mostra, de certa forma, o processo de confecção da tapeçaria. Nos revela os segredos por trás das belas figuras do lado direito.

Pode-se conceber a tradução como uma maneira de sondar mais intimamente não apenas o texto em si, mas o próprio processo envolvido em sua escritura. O tradutor é aquele leitor que examina o texto com mais atenção, com mais vagar, e que portanto tem a oportunidade de investigar e descobrir facetas não aparentes. Mas vai além: não apenas o lê com intensa atenção; o reescreve, com base em exame, método e pesquisa. A tradução seria, enfim, na hipótese mais otimista, o texto dissecado.

Na tradução, o texto é submetido ao máximo de tensão. Suas qualidades, mas também seus defeitos, podem ganhar contornos mais nítidos. Às vezes a sugestão é substituída pelo ostensivo, com possível perda de elementos estéticos importantes contidos na concisão. A subestrutura do texto é, em parte, revelada.

Foi Ezra Pound quem disse que a tradução é uma forma sui generis de crítica, por tornar patentes as estruturas ocultas do texto. A tradução como uma forma de crítica literária. Uma forma de exibir o esquema básico que fundamentou a escritura e o próprio texto.

E não se trata apenas de sondar o âmago de um texto, mas penetrar, como diria Paulo Rónai, a intimidade do autor. Perscrutar-lhe os pensamentos, em busca da solução para a difícil passagem de uma língua, de uma cultura, de um tempo a outro.

Talvez seja esse caráter de esquadrinhamento meticuloso, que deveria presidir ao ato tradutório, que possibilite a análise objetiva de uma tradução. Criticar as traduções é, de fato, uma necessidade. Há que buscar e impor a qualidade como pressuposto do trabalho do tradutor. A boa tradução deve ser valorizada, incentivada, e naturalmente bem-paga. Para tanto, há que investir em meios objetivos de análise, que levem em conta elementos que se depreendem, às vezes até facilmente, da leitura de uma tradução: o tempo investido em pesquisa; a correção gramatical e vocabular; a preocupação com a correta captura de referências culturais; o cuidado no estilo. O respeito, enfim, às qualidades intelectuais tanto do autor quanto do leitor, entre os quais o tradutor deve mediar.

A racionalidade tem lugar garantido tanto no ato tradutório como na avaliação de uma tradução. As infinitas possibilidades de uma tradução — fato inescapável, aliás — não podem funcionar como desculpa para defender a impossibilidade da análise qualitativa do texto traduzido. O caráter fluido e instável do texto não é pretexto para chancelar a eventual incompetência de aventureiros.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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