Em defesa da possibilidade de traduzir

Traduzir é, acima de tudo, compreender e exprimir o que se compreendeu, de uma forma aceitável pela comunidade dos leitores e falantes da língua de chegada
01/09/2008

Traduzir é, acima de tudo, compreender e exprimir o que se compreendeu, de uma forma aceitável pela comunidade dos leitores e falantes da língua de chegada. Tudo o que pode ser lido e compreendido deveria poder ser traduzido. Dito de outra forma, o que não pode ser traduzido, não pode, na verdade, ser compreendido.

Não se podiam traduzir hieróglifos antes da pedra de Roseta, simplesmente porque não se compreendiam os textos hieroglíficos. Descoberta a chave, desata-se a tradução, abre-se a caixa de Pandora, saem a correr todos os males do mundo, todas as imperfeições, todas as incompreensões. A grande tarefa do tradutor é compreender o texto. Daí a necessidade de longas horas de lento e penoso trabalho de pesquisa, incluindo, às vezes, entrevistas com o próprio autor ou com estudiosos do texto original.

Não basta, claro, apenas compreender. Vem, depois, todo um trabalho de exprimir o compreendido de maneira adequada. Esse é outro capítulo. Mas a dificuldade de expressão não torna, de modo nenhum, impossível a tradução. Mesmo a tradução de poesia, tida por alguns como justo o que não se pode traduzir. Tudo o que faz sentido é possível traduzir. O tradutor não recuou diante dos hieróglifos; quanto menos o fará mesmo diante do poema mais hermético.

Mesmo as obras mais intrincadas, mais inovadoras, mais inventivas, são traduzíveis. Traduziu-se Grande sertão: veredas, traduziu-se Finnegans wake. Não há o que não possa ser traduzido (exceção feita ao que não pode ser lido). Um grande poema é um grande problema de tradução, não uma impossibilidade. A tradução será tanto melhor quanto maiores a energia, a pesquisa e o talento aplicados. Não há segredo nisso. Há apenas (mas muito) trabalho.

Toda a teorização em torno da impossibilidade da tradução às vezes parece trabalho de marketing para valorizar uma obra literária, ou um conjunto de obras literárias. Quanto mais impossível de traduzir, maior seria o valor intrinsecamente literário da obra. Desabona-se, por antecipação, qualquer tentativa de tradução, pretendendo-se, com isso, realçar as qualidades do original.

Pode-se dizer que sempre haverá um resto que não pode ser traduzido. Mas também há, na compreensão do leitor comum, uma série de restos após a leitura de uma obra literária. Distintos serão os níveis e a amplitude de compreensão de um texto quando se comparam dois leitores. O texto será o mesmo, mas os restos despercebidos variarão de leitor a leitor.

O que não se pode mesmo traduzir é o desejo de traduzir tudo, tudo ao mesmo tempo, em um só texto. Um mesmo original necessitará de múltiplos leitores e múltiplas traduções para alcançar mesmo sombra de plena expressão. A grande obra literária sempre dará origem a interpretações tão ricas quanto díspares. Impossível traduzir o ego do autor ou do crítico, quando querem impor sua própria interpretação como a única aceitável.

Não parece razoável esperar que uma obra literária seja perfeita. Não deveria ser sensato exigir perfeição na tradução da obra literária, assim como não se deveria presumir biunivocidade entre signo e sentido, ou entre signos de línguas distintas. Tradução é risco – risco de imperfeição, risco de incompreensão. A alternativa ao risco é aquilo que, com ironia, prescrevia Leminski: deixar em paz toda mensagem no idioma em que foi concebida. Tudo o que pode ser lido e compreendido pode ser traduzido. Haveria que ver se o que não pode ser traduzido mereceria ser lido.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho