El Supremo (7)

“Yo el supremo”, de Augusto Roa Bastos, é um romance repleto de remissões e traduções, de análise sobre linguagem e literatura
Augusto Roa Bastos, autor de “Yo el supremo”
01/07/2023

Uma vez mais insisto em retornar ao romance Yo el supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos. Um livro prenhe de remissões e traduções, prenhe de alusões à história, prenhe de análise sobre linguagem e literatura. E eivado também de notas ácidas sobre as possibilidades de expressão, comunicação e sobrevivência do texto.

O romance, em boa parte, é um diálogo entre o ditador e seu amanuense. Diálogo que muitas vezes não passa de uma sucessão de tentativas frustradas de comunicação. Nota-se, nos comentários do supremo, a decepção com a fluidez e o caráter volátil das palavras e do texto. “Pensar no amanuense me levava a Aristóteles quando sustentava que as palavras de Platão eram volantes, movediças e, consequentemente, animadas; me levava a Antífanes quando sustentava que as palavras dirigidas por Platão aos meninos se congelavam por causa da frialdade do ar. Em razão disso, não eram entendidas até que as palavras ficassem velhas; os meninos também ficavam velhos e então entendiam algo muito distinto do que as palavras diziam ao princípio.”

São reflexões que podemos não apenas circunscrever ao discurso de Platão, mas extrapolar para o texto em geral. Tocam basicamente em dois aspectos distintos das palavras.

O primeiro aspecto — seu caráter “animado”, vivo, volátil — representa não só uma dificuldade para a comunicação, mas também um obstáculo de peso à tradução. Essa característica cambiante é reforçada pelo ditador em outro ponto do romance, por outro ângulo: “As mesmas palavras expressam diferentes sentidos, conforme o ânimo de quem as pronuncia”.

O segundo aspecto remete ao caráter suposta (e ironicamente) estático da palavra (seja escrita, seja falada), o que logo se desmente diante das metamorfoses que sofrem com o passar do tempo tanto o texto quanto seus destinatários, assim como a capacidade de compreensão destes.

O tradutor deve enfrentar esse caráter mutável — ainda que sob máscara aparentemente estática — das palavras, dos textos, da linguagem como um todo. É, de fato, parte da tarefa do tradutor buscar identificar o ânimo das palavras e de seus autores — inclusive no caso da versão de textos orais. Não é um desafio menor — e, na verdade, tende a ser insuperável se o objetivo é a perfeição ou a unanimidade —, até porque, como bem aponta o protagonista de Roa Bastos, o objeto da tradução é intrinsecamente esquivo e impenetrável.

Lemos novamente o supremo: “A linguagem é parecida em todo lugar. As fábulas também. Não há ponto fixo para julgar. Me parece que não saíram das letras mas das palavras dos homens, anteriores às letras. Pouco importa, pois importa menos saber a origem das coisas que seus resultados. Tudo está em símbolos. Nada mais se faz que mudar de fantasia. Dois olhos, uma só visão. Um só livro, todos os livros. Mas cada coisa lança certo eflúvio parecido e ao mesmo tempo distinto de todos os outros. Exalação, alento próprio”.

Novamente, temos, na análise do caudilho paraguaio, a visão de uma linguagem arisca e, portanto, de uma tradução imprecisa — “não há um ponto fixo para julgar”. Novamente, temos a noção de ânimo próprio das palavras e de seus autores.

A conjunção dessas duas hipóteses — todos os livros em um só, feitos de palavras “animadas” — torna o texto ao mesmo tempo plano e previsível, de um lado, e idiossincraticamente distinguível, de outro.

Para concluir, uma nota de curiosidade. Augusto Roa Bastos fez também incursões no terreno da tradução, entre outros ofícios. Verteu para o espanhol a letra do samba-canção Vingança, composto por Lupicínio Rodrigues. Em espanhol, a canção virou o tango Venganza. Dupla tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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