El Supremo (6)

Livro de Roa Bastos é uma fonte quase infinita de cogitações sobre a natureza, as possibilidades e os alcances da tradução
O paraguaio Augusto Roa Bastos, autor de “Yo el supremo”
01/06/2023

Dou continuidade, novamente, às reflexões sobre a tradução que inspira Yo el supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos. Trata-se de uma obra em que, segundo a organizadora da edição, Milagros Ezquerro, vigoram “a utilização de textos alheios, o desmantelamento do discurso histórico, a equiparação da História, do mito e da ficção, a alteração da cronologia”. Essa estratégia de escritura e, mais do que isso, as frequentes menções às bases mesmas da linguagem e de sua interpretação tornam o romance uma fonte quase infinita de cogitações sobre a natureza, as possibilidades e os alcances da tradução.

Roa Bastos se estende, especialmente, em observações sobre os embaraços encontrados na interpretação da realidade em texto. Essa é uma linha que perpassa todo o romance, numa ácida apreciação da linguagem e de sua capacidade de comunicação: “O que no ser humano há de prodigioso, de temível, de desconhecido, não se colocou até agora em palavras ou em livros, nem se colocará jamais. Pelo menos enquanto não desapareça a maldição da linguagem como se evaporam as maldições irregulares. Escreve então. Sepulta-te nas letras”.

A vivacidade e a flexibilidade da linguagem oral são contrastadas com a rigidez e a estagnação da linguagem escrita. A produção da escritura supõe a morte da realidade e o nascimento de um simulacro. Além disso, a cristalização da linguagem oral na escrita transmitiria a seu vetor — o escritor — o mesmo vírus de solidificação e extinção.

Enquanto apenas falava e ditava suas ideias, havia mais vida no personagem. A passagem do ditado à redação implica a travessia para a morte. Nas palavras do supremo: “No princípio não escrevia; unicamente ditava. Depois esquecia o que havia ditado. Agora devo ditar/escrever; anotá-lo em algum lugar. É o único modo que tenho de comprovar que ainda existo. Mas estar enterrado nas letras não é acaso a mais completa maneira de morrer?”.

O romancista paraguaio nos instiga a repensar como se produz e reproduz a linguagem a partir de seus elementos básicos — e como é imperfeita a transição que imaginamos fazer entre realidade e texto. As metáforas usadas pelo caudilho protagonista são instigantes: “As letras se cansam, se apagam, desaparecem. São como o mercúrio. […] Quanto mais o amassam, comprimem, dividem, mais foge e se esparrama. O mesmo acontece com todas as coisas. Subdividindo-as em sutilezas, o único que se consegue é multiplicar as dificuldades. É fazer propagarem-se as incertezas e as discórdias. Tudo o que se divide indefinidamente se torna confuso até ficar reduzido a pó”.

Roa Bastos ou seu protagonista — ou mesmo ambos — se mostram cansados e impotentes diante do abismo que parecem enxergar entre a realidade e a forma de expressão que usamos para retratá-la. Parecem desconcertados ante a fugacidade dos fatos e, mais, ante a efemeridade da linguagem e de seus elementos básicos. Tudo se derrete continuamente.

E quanto mais se tenta fixar o sentido pela reiteração, mas esquivo ele se revela: “O mecanismo da linguagem tem por fundamento a repetição, e pela repetição é que se geram as mudanças da linguagem”.

O ceticismo é claro, mas, do fundo desse vale pessimista, parece despontar um traço de esperança (a “verdadeira linguagem”), ainda que efêmero e certamente ilusório: “As formas desaparecem, as palavras queimam, para significar o impossível. Nenhuma história pode ser contada. Nenhuma história que valha a pena contar. Mas a verdadeira linguagem não nasceu ainda. Os animais se comunicam entre si, sem palavras, melhor do que nós, ufanos de tê-las inventado com a matéria-prima do quimérico. Sem fundamento. Nenhuma relação com a vida”. E, no entanto, seguimos sempre traduzindo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho