El Supremo (5)

“Yo el supremo”, de Augusto Roa Bastos, oferece uma ampla gama de reflexões sobre linguagem, literatura e tradução
Augusto Roa Bastos, autor de “Yo el supremo”
01/05/2023

Volto, uma vez mais, à obra máxima do paraguaio Augusto Roa Bastos, Yo el supremo. Como tive ocasião de observar nas quatro colunas precedentes, esse longo romance labiríntico nos brinda uma ampla gama de reflexões sobre linguagem e literatura, possibilitando, também, a extensão daquelas ao campo da tradução.

O protagonista de Roa Bastos, inspirado no ditador paraguaio José Gaspar Rodríguez de Francia, tece ao longo do texto uma série de críticas aos processos de sucessivas traduções que sofre a linguagem nas diferentes transições de meios. A crítica é tanto mais acerba quanto mais se aproxima da passagem do oral ao escrito.

Os questionamentos do supremo são expressos em seu caderno privado e, principalmente, na longa interlocução com seu amanuense, o qual funciona, quase sempre, como exemplo de mau tradutor.

As broncas contínuas no amanuense revelam a inconformidade do ditador diante da fluidez da linguagem: “Em vez de trasladar no estado natural o que te dito, enches o papel de fanfarronadas incompreensíveis. Velhacarias já escritas por outros. Te alimentas com a carniça dos livros. Ainda não arruinaste a tradição oral só porque é a única linguagem que não se pode saquear, roubar, repetir, plagiar, copiar. O falado vive sustentado pelo tom, os gestos, os movimentos do rosto, os olhares, o sotaque, o hálito do que fala. Em todas as línguas as exclamações mais vivas são inarticuladas. Os animais não falam porque não articulam, mas se entendem muito melhor e mais rapidamente do que nós.”

A fala exasperada do supremo é um elo mais na longa tradição que — com sentidas razões, aliás — exalta o oral sobre o escrito. A criação da escrita foi, antes de tudo, uma tradução da oralidade; e, como toda tradução, revelou-se imperfeita e, por isso mesmo, justo alvo de crítica.

A exasperação do ditador resvala para o desespero ao sentir que seu esforço pela correta expressão do que fala/dita é dissipado nos labirintos de uma tradução caótica: “Quando te dito, as palavras têm um sentido; outro, quando as escreves. De modo que falamos duas línguas diferentes. […] A linguagem falsa é muito menos sociável que o silêncio. […] O que te peço, meu caro Panzancho, é que quando te dito não trates de artificializar a natureza dos assuntos, mas de naturalizar o artificioso das palavras. […] Escreve o que te dito como se tu mesmo falasses por mim em segredo ao papel”.

O desejo de manter a mensagem intacta, tal qual está no original, é o grande desafio da tradução — desafio que sistematicamente supera a capacidade do tradutor. O desejo, contudo, permanece vivo, assim como a respectiva frustração. Perdura o anseio de subsistir, ainda que seja em parte, como bem o exprimiu o supremo: “Quero que nas palavras que escreves haja algo que me pertença”.

Quando essa aspiração enfrenta a realidade, e quando se aceita a realidade, muda o entendimento do processo. E esse anelo antigo é substituído pela seca resignação: “Escrever é descolar a palavra de si mesmo. Carregar essa palavra que se vai descolando de si com tudo de si até ser tudo do outro. O totalmente alheio”.

Essa mesma resignação leva até ao desencanto com a própria função da escrita, e sua categorização como instrumento que trabalha contra a comunicação. Pensa consigo o ditador: “Que significado pode ter, por outro lado, a escritura quando por definição não tem o mesmo sentido que a fala cotidiana falada pela gente comum? […] Tal é a maldição das palavras: maldito jogo que obscurece o que busca expressar”.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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