Continuo, nesta coluna, a série de reflexões iniciada em janeiro último sobre a grande obra do paraguaio Augusto Roa Bastos, Yo el supremo. Como já tive ocasião de apontar, trata-se de livro que evoca uma série de especulações sobre a relação entre a literatura e a tradução.
Um dos aspectos que sobressaem na leitura de Yo el supremo, aspecto esse destacado pela editora Milagros Ezquerro, é a refutação do autor como dono e criador fundamental do texto. Outro aspecto essencial é a contestação da linguagem como instrumento legítimo para significar o concreto.
Para Ezquerro, o personagem compilador usurpa a função do autor, implicando, com isso, a substituição das noções de criação, originalidade, inspiração e propriedade privada pelos conceitos quase antagônicos de trabalho de segunda mão, plágio deliberado, imitação e bem coletivo. Assim, o compilador seria o “artesão que elabora uma obra a partir de materiais que são propriedade de uma coletividade: uma língua, uma História, uns mitos, uma literatura, toda uma herança cultural”.
O próprio supremo, em seu caderno privado, anotou ideias sobre a questão da autoria, argumentando que, em outras épocas, o escritor não era um indivíduo, mas um povo, um povo sagrado, que redigia livros universais, códigos, oráculos: “Assim foram escritos os Livros Antigos. Sempre novos. Sempre atuais. Sempre futuros”.
Apesar de sua louvação aos antigos, aos autores coletivos e sua fidedigna criação, o supremo critica veementemente a volubilidade do texto: “Os papéis podem ser rasgados. Lidos com segundas, até com terceiras e quartas intenções. Milhões de sentidos. […] Os fatos não. Estão aí. São mais fortes que a palavra. Têm vida própria. Atenhamo-nos aos fatos”.
Embora pareça crer na possibilidade de identificação imediata dos fatos, também critica acidamente a capacidade da linguagem de captar o real: “Poderias inventar uma linguagem na qual o signo seja idêntico ao objeto? Inclusive os mais abstratos e indeterminados. O infinito. Um perfume. Um sonho. O Absoluto. Poderias fazer que tudo isso se transmita à velocidade da luz? Não; não podes. Não podemos”.
A desconfiança expressa pelo supremo atinge a tradução em seu sentido mais amplo. O ditador aponta o dedo tanto à volubilidade dos significados que vincam o papel quanto à falta de esteio para a transposição fidedigna do fato à narrativa.
Ao mesmo tempo, parece estar sempre em busca de um método que seja capaz tanto de captar corretamente a realidade quanto de inscrevê-la numa linguagem. Em elucubrações inscritas em seu caderno privado, o supremo arrisca uma saída: “Escrever ao mesmo tempo que visualizar as formas de outra linguagem composta exclusivamente por imagens, ou, dito de outra forma, por metáforas ópticas”. Uma nova linguagem ideográfica, talvez?
Vê-se um elemento de fantasia, realismo mágico, se impor na expressão do ditador, que pretende ter inventado uma espécie de caneta miraculosa com a qual buscaria atingir a “escritura visível”. E, ainda assim, a realidade se esquiva da narrativa, pois o concreto, na visão do supremo, pode não passar de “escritura-imagem que vai tecendo suas alucinações sobre o papel”.
Como cogita o caudilho em seu caderno privado, mesmo a escrita mais visível e mais transparente em relação ao objeto teria lá suas áreas de opacidade, dobras inescrutáveis, a depender do ângulo e do campo de visão: “O que é inteiramente visível nunca é visto inteiramente. Sempre oferece alguma outra coisa que exige ainda ser olhada. Nunca se chega ao fim”. Assim também na tradução, o original nunca pode ser apreendido — e muito menos trasladado — em sua inteireza. Fato que não impede a busca incessante de translucidez.