Edward Sapir e os dois níveis de arte na literatura

Edward Sapir propõe, a tradutores e leitores, uma questão intrigante sobre a tradução literária.
01/04/2008

Edward Sapir propõe, a tradutores e leitores, uma questão intrigante sobre a tradução literária. Não estariam, no texto ficcional, entrelaçados dois níveis ou tipos diferentes de arte? Uma que se pode trasladar praticamente intacta, sem perdas, para outra língua; e outra, arte propriamente “lingüística”, que não se pode trasladar?

Não raro, numa mesma tradução, podem-se identificar trechos em que a tradução é especialmente “feliz”, e outros nos quais não se alcançou o mesmo nível de qualidade. Ou seja, em certos trechos, a tradução alcança, por assim dizer, as mesmas alturas do original, produzindo no leitor sensações semelhantes; enquanto, em outros, parece perder-se a arte: a tradução se mantém notavelmente distante do efeito que provoca no leitor o texto primeiro. Fala-se, aqui, claro, de um mesmo texto traduzido por um mesmo tradutor.

Não se podem descartar eventuais flutuações da qualidade do próprio original, nem naturais altibaixos no desempenho do tradutor, provocados por motivos os mais diversos. Sem perder de vista essas ressalvas, parece haver, no texto literário, algo que determina de antemão seu destino, ou a natureza de seu uso. Algo que defina seus limites, seus alcances, seus timbres.

O primeiro tipo de trecho é aquele que se pode exprimir, com relativa semelhança de colorido e sabor, em ampla gama de línguas diferentes. Ou que se pode transferir, com sensível equivalência, para uma variedade de ambientes culturais distintos. Os elementos ali contidos parecem amoldar-se, de maneira relativamente “fácil”, a línguas, épocas e locais diferentes. Pode-se dizer que a tarefa do tradutor, sem jamais ser simples, simplifica-se. Naturalmente, mesmo no caso dessas passagens menos áridas, exige-se do tradutor toda a diligência e todas as demais qualidades (disposição para a pesquisa, meticulosidade, conhecimentos de ambas as línguas, etc.).

Mas o segundo tipo de “trecho” exige muito mais; exige uma medida adicional de arte e arrojo. Sobressai por algum tipo de impenetrabilidade, por um quê de sinuosidade ou de ofuscante limpidez. Essas partes mais peculiares de um texto, como propõe Sapir, talvez sejam determinadas por características lingüísticas, especialmente por qualidades inerentes a uma dada língua.

Podem-se imaginar alguns aspectos lingüísticos que dariam a certos textos, ou trechos de textos, esse caráter próprio. Peculiaridades sintáticas que tornem difícil reproduzir, em outra língua, determinadas relações entre elementos textuais. Singularidades lexicais que tornem difícil a tradução direta e exijam algum tipo de paráfrase ou explicação — algo que elimine do texto o caráter imediato e ágil, a idéia contida em semente mínima.

A característica principal da tradução desse tipo de passagem é sua quase certa inadequação. A sensação de inadequação, que ronda todo e qualquer exercício tradutório, mostra-se mais aguda e cruel em textos dessa natureza. O tradutor se desdobra, se contorce na busca da melhor solução: mais concisa, mais apurada, mais “natural”. Mas naturalidade é tudo o que falta na tradução dessa espécie de texto. As palavras tornam-se ásperas aos ouvidos, a estrutura soa canhestra, torcida, forçada.

Não há inspiração que chegue, pois o problema parece ter algo de estrutural, de intrínseco, de inerente. Inescapável, enfim, o sentimento de frustração — aliás tão comum em qualquer ato de transporte entre línguas. O gosto de produzir um resultado razoável, contudo, é certamente indizível. Raros prazeres da tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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