E o texto lança de si significados

O texto lança de si sentidos, vários, tantos. Explosão. Caos feito dessa confusa profusão de significados, à espera de seu próprio demiurgo
04/08/2014

O texto lança de si sentidos, vários, tantos. Explosão. Caos feito dessa confusa profusão de significados, à espera de seu próprio demiurgo. Há que capturá-los, soltos no ar, presos no papel, livres na mente. Há que identificá-los, classificá-los, aplicar-lhes pacientemente fina taxonomia. E ir além: aplicar-lhes arte — literatura, o requinte da palavra — mais que ofício. Trazê-los de volta ao rés da folha, fixá-los, gravá-los em nova roupagem.

O texto também espraia sentidos. Criação via dispersão, como descargas que vão semear novas palavras. Fagulhas que já não guardam vínculo sólido com o fogo que as originou. Só o risco luminoso no ar, fugaz. Há que reuni-los, os sentidos, ordená-los, colocá-los em forma que volte a fazer sentido. Enfeixar ideias esparsas para, no firme atrito ideia contra ideia, gerar chispa e texto novo, tradução.

Nesse atrito, recuperar a fera trombada do fantástico com o real, fazer brotar de novo a literatura. Raspar do real a fina camada veraz, o verniz que esconde a multiplicidade do olhar e a irresponsável indeterminação do sentido. Mergulhar nesse poço de enganos. Cajado fincado na terra que faz brotar a água. Milagres da pena, tradução.

Nesse atrito, friccionar texto contra circunstâncias — buscar no contexto o efeito surpreendente. Roçar a pena no papel: dos sulcos, palavras. Das raspas ainda quentes — pastoso-plásticas, moldáveis — novas quimeras feitas ideias. Das faíscas, tradução.

Mergulhar na aparente lisura do texto e sentir todo o seu áspero relevo: ravinas cavadas pelo escoar de tantos sentidos. Sentir a textura ríspida dos sulcos rascados, feitos à custa do rasgo da pena. Enxergar além do espelho plácido do texto, verdadeira tradução.

Na tradução, desafiar de novo a verdade do original — como em cada leitura. Aceitar o desafio que lançou lá atrás o autor. Elucidar o enigma, inteiro ou parcialmente. Fixar nova verdade, para que outra vez enfrente o mesmo desafio, num rito de eterno retorno: tradução.

Gravar em novo texto aquele mesmo sabor da palavra, palavra que perdura em toda a sua extensão, na memória, num sentir que abarca o ser todo. Em novo texto, a palavra que efetivamente perdura. Fazê-la render além do que dela se podia esperar: tradução.

Recuperar, na tradução, aquele gesto esquecido do autor, perdido nos meandros de tantas palavras. A palavra que não se escreveu, mas que esteve presente na ponta da pena. À beira de. Retomar não a real e inequívoca intenção original do autor, mas a sensação daquele gesto esquecido — o gesto que se desenhou na gênese do texto.

Encontrar, na tradução, a velha sensação da surpresa, literatura. Saber, o tradutor, maravilhar-se uma e outra vez com as repetições surradas — e transformá-las em nova literatura. Saber renovar um texto velho, original. Encontrar encanto, tradução.

O original não seria álbum de fotos, mas imagem em movimento, literatura. O corte, cirúrgico, deve passar despercebido, a montagem sólida e convincente, sem costuras aparentes, embora inevitáveis. Trabalho do tradutor sobre o texto. Obra que, embora não lapidar, saiba lançar de si as mesmas provocações do original. Cuidar do texto dos outros, para outros.

Cerzir de maneira que não se saiba exatamente qual o original, qual a tradução: tradução perfeita. Objetivo utópico de toda escrita. Alcançar a perfeita transmutação da palavra bruta — matéria sobre matéria, tinta sobre papel — em nova ideia.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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