Dom de encantar

As palavras e os sentidos têm o dom do encantamento
31/03/2018

As palavras e os sentidos têm o dom do encantamento. Exercem seu fascínio com a facilidade dos talentos inatos. Inebriam e provocam. É doce deixar-se enredar, deixar-se levar para longe do aqui e do agora. Mergulhar num mundo onírico, em que tudo parece possível, mas nem tudo parece fazer sentido.

Encantam as palavras, encantam os textos. Tornam a leitura deleite e a tradução, tortura. Fixam a meta acima do possível. Fazem o tradutor, rasgando o coração, contentar-se com recuperar tênue lume, nada mais que isso, do sentido original.

O encanto incendeia a mente. Desvia os sentidos a interpretação açodada. Aqui todo cuidado é pouco. O engodo do encantamento já arrastou muitos a encruzilhadas sombrias de onde não se volta mais com a mente sã; de onde não se volta mais com nenhuma mente. Queria achar o remédio, o fio que conduz à saída. Queria mergulhar no original todo o rigor do entendimento, para emergir dali com o texto pronto, liso, escorreito. Texto traduzido, como suma definição daquilo que é bem compreendido.

As palavras fascinam o pobre leitor e levam o tradutor à loucura. Perdido nesse excesso de sensações, tem que manter o olhar reto e o equilíbrio da mente. Tem que perscrutar todo o sofrimento e todo o pulsar que se escondem e se revelam nas palavras e em seus sentidos fugidios. Tem que explorar certas regiões do texto onde o terreno parece ceder a cada passo e onde os sentidos parecem escamotear-se em roupagens rotas e opacas.

Todo cuidado é pouco com o arroubo do encantamento. Pode deleitar o leitor, pode trair o tradutor. Pode desviar a interpretação para longe do sentido original. Que à mente custa seguir toda a extensão dos sentidos em outra língua. Mas também lhe custa seguir toda a extensão dos sentidos em sua própria língua.

É, as palavras têm esse dom do encantamento e disso não se pode fugir. Não se lê um bom texto literário impune e dele não se sai ileso só ao desviar o olhar. Dos sentidos ninguém se desvencilha fácil; impregnam a mente por eras.

As palavras e os textos encantam, de fato. Veem-se sentidos imprecisos e imprevistos que se estendem das palavras cruas. Maravilham. E que fazer deles? Impossível retirar uma a uma as camadas sobrepostas de sentidos para alcançar, lá no fundo, o conteúdo original?

O fascínio deleita e inebria. As palavras projetam sentidos nessa quase névoa em que se pensa que se pode ver, em que se pensa que se pode ler, em que se pensa que se pode entender. As palavras projetam sensações, magnificando significados.

Todo esse encantamento torna a leitura deleite. A mais pura sensação de prazer. A mais nítida impressão de compreensão. A certeza tranquila de quem tudo leu e tudo entendeu. Ao tradutor, porém, sobra a semente da dúvida. Uma névoa que nubla e turba os sentidos, destilando-os em sensações de difícil definição. Do fundo da névoa, os sons. Recorda o tradutor todos os sons; tradu-los em outras palavras — que já não se acham mais as originais, nem suas equivalentes.

As palavras e seus significados fascinam o leitor, assustam o tradutor. O medo de não mais entender, de perder os sentidos para sempre. A névoa que cobre o texto também pode nublar a mente. Os sentidos pesam sobre o texto, pesam sobre a compreensão do leitor, pesam sobre a tarefa do tradutor.

Enfeitiçado pelas palavras, enfim. Vive sua sina, sempre. Sina que não é a mesma do leitor, que experimenta o puro deleite da leitura. Tem que ir além da leitura. Tem que fazer da leitura o primeiro degrau da interpretação. Uma superleitura que o faz senhor do texto e senhor do original.

Todo o fascínio de um texto sob o domínio do tradutor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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