Não há como prever os rumos esquivos que tomam os textos, nesses fluxos caóticos de idéias e palavras que se entressemeiam. Traduzir é um pouco como pilotar o bólido entrópico que liga o caos ao caos. Balizas são hastes de capim ao vento: às vezes verticais, no ar estático, às vezes rasteiras, sem nada indicar, vergadas pelo sopro forte.
Já se tentou de tudo ao falar de tradução. Bolaram-se teorias, forjaram-se práticas. Nada emplacou. Não há como congelar o fluxo enérgico da linguagem, que se precipita ladeira abaixo arrastando tudo: léxicos, sintaxes, quaisquer outros conjuntos ou listas de unidades ou regras. Assim como não se pode teorizar sobre o futebol (não o anódino esporte de laboratório, mas o bem jogado, claro, no qual o improviso, a inteligência prática e a sutileza do toque fazem a melhor triangulação).
Os rumos esquivos do texto não deixam sulcos definitivos. No máximo ranhuras na areia que já vai ser lambida pela onda rasteirinha da praia. Quantas palavras? Quatrocentas mil no português? Algumas dezenas de milhares mais no inglês? Quantas combinações possíveis? Não há matemático que calcule o tanto de trilhas que se podem abrir na folha dócil do papel, este que tudo aceita, passivamente.
O leitor que ajude a criar ainda mais. De tudo o que o autor não pensou, algo será pensado pelo leitor — uma lágrima no oceano das possibilidades. O tradutor terá de pensar um pouco mais — baldes a mais. Debruçar-se sobre o texto, enfiar a cara no papel, com algum método e muito suor, emergir do outro lado com outro texto possível. Que seja pelo menos possível, mesmo que não o mais provável. Basta para defender-se da crítica. Que o importante é ter uma boa defesa armada. O resto é texto.
Domar textos esquivos, parágrafos arredios, jamais concebidos para a violência da tradução. Não são peças maleáveis, que se amoldam com molejo à nova língua. É preciso quebrar, muitas vezes. Mas a violência da quebra também gera reação — e a estranheza é a pior delas, pois cria desconfiança e predisposição negativa. O texto é visto, já de saída, como algo defeituoso e pouco merecedor de crédito.
Sina de toda a tradução? Alvo de desconfiança e descrédito? Obra menor, aviltante, que diminui o original? Ou apenas mais um desvio nesses fluxos esquivos de todo texto? Dessas trilhas tortas que, serpenteando, alongam o caminho sem levar a lugar nenhum. O consolo é que a tradução não precisa chegar a lugar nenhum. Basta ficar onde está: o ponto original. Andar em círculos — cuidando para manter curtinho o raio. Fixar-se no centro, lançar o laço sobre a estaca nada saliente e também esquiva. Errar o lance. Ser varrido pela primeira onda da pororoca. Para bem longe do centro. Sem ponto de apoio.
Na tradução, a raiz da inteligência humana e também a origem do bem e do mal. Diferenciação a partir do original absolutamente puro —diante do qual qualquer movimento é desvio. E são tantos os desvios dos textos. Não só na tradução, claro, mas em qualquer escritura. O pensamento não segue uma linha reta. E se segue, tanto pior: é o que basta para lançar o texto da ribanceira. Que às vezes as curvas é que nos salvam do precipício.
Os textos são só desvios, e não há desvio maior que qualquer tradução. Eis aí talvez a melhor tradução para esse velho ofício: desvios. Que se tomam para contornar a incapacidade de ler o original, de entender o original, de decodificar o original. O código se perdeu, meu caro. Ficamos sós. Só eu, você e a tradução de um texto que se perdeu. Já não se sabe mais, nesses tantos desvios, qual o original e qual a tradução.