Pessimismo e vontade se enlaçam de formas curiosas em uma tradução, ou no fenômeno tradutório em geral. Tradução é fenômeno de difícil apreensão, de ainda mais difícil explicação. Mas símiles não faltam. Schopenhauer, em seu amargor e pessimismo característicos, comparava uma biblioteca de traduções a uma galeria de pinturas formada de cópias apenas. Ou então comparava a tradução a uma peça musical transposta a outro tom.
Não concebia meio-termo, o filósofo alemão: a tradução ou seria morta, de estilo forçado, como talvez a peça musical forçadamente transposta a tom diferente do original, ou então seria falsa de tão livre. Isso na prosa. Na poesia, em vista da aparente impossibilidade de sua tradução, Schopenhauer parecia acenar com simpatia para o lado criativo do fenômeno: “Poemas não podem ser traduzidos, mas apenas repoetizados, o que sempre é delicado”.
Mas poesia é risco, e tradução de poesia, risco dobrado diante de tão frágil delicadeza. Operação ousada a tal repoetização. Na prosa, talvez o risco não seja muito menor. Quem sabe, na prosa, o justo meio-termo entre a morte e a falsidade seja a recriação. Filósofo de inspiração budista, Schopenhauer poderia se deixar convencer pelo argumento do caminho do meio. O pessimismo era mais forte.
Nele prevalece a vontade individual como criadora de dores e desilusões. Não a Vontade última e absoluta, mãe e reunião de todas as vontades pequenas. Vontades que concorrem para buscas que de saída se entregam ao fracasso. Exemplo? Que a tradução seja exata, no sabor e nos contornos, ao paladar e ao tato reprodução mais que perfeita.
Isolado e pessimista, Schopenhauer era talvez a representação mais fiel de um pobre tradutor às voltas com as desventuras de um texto indomável, porque inapreensível por um só olhar. Mergulhado nas misérias mais intrincadas da alma humana, isolado e na solidão — encolhido e taciturno no fundo de um quarto de pensão, o filósofo pensa a ponte entre o humano e o divino. Do lado de cá, numa luta mais prosaica, o tradutor tenta a ponte entre a língua sua e a do outro, o tempo seu e o do outro.
A característica tateante de uma e de outra funções as aproxima e une na mesma e sinuosa sina: entrar e sair de meandros que não respeitam vontades alheias. Lamentava Freud que o poder criativo do autor nem sempre obedece à sua vontade. O poder recriativo do tradutor também lhe escapa às rédeas com extrema facilidade. Daí à insatisfação e à profunda frustração não é caminho tão longo.
Tradução não é só vontade, claro. É também representação. O texto se repete como farsa de si mesmo. O tradutor, farsante, posa de autor e criador. Mas é farsa, representação equivocada de uma idéia que não é sua. O texto-mundo, como vontade e representação, encontra no ato tradutório uma solução impossível de ser pensada. Vontade cega guiando a mão e a pena à plena decepção — deception, como falsa representação, tensa impostura.
O texto, e sua tradução, enfim, como o mundo de Schopenhauer, não resiste só. Depende, para sua existência plena de sentidos e efeitos, na nata da literatura, das balizas e dos parâmetros de possibilidade dados pelo leitor. Balizas e parâmetros, que, com sua dura realidade, ajudam a dissolver vontades pequenas e ilusões tristemente arraigadas: cobranças de tosca fidelidade, à custa da essência da criação. Mera representação, rastejante pessimismo.