Das trevas, tradução

As múltiplas possibilidades de tradução no embate entre duas culturas distintas e em iminente conflito
Joseph Conrad, autor de Coração das trevas
01/02/2025

Heart of darkness [Coração das trevas], clássico de Joseph Conrad, narra a incursão de colonizadores europeus no Congo e suas impressões e interações com os autóctones. A obra é caracterizada pela visão do colonizador: o desconhecido — o cenário congolês do final do século 19 e seus habitantes — inspira espanto e medo. O africano, por seu turno, vive também espanto e medo, mas, acima de tudo, convive com o terror imposto pelos exploradores estrangeiros. A relação, absolutamente desigual, é marcada pela falta de entendimento mútuo, por uma tradução imperfeita ou inexistente.

Uma cena, em particular, chama a atenção por revelar esse quadro de maneira bastante direta e crua. Subindo o rio Congo, o barco atravessa trecho em que, através da muralha de vegetação, se ouvem sons incompreensíveis, se vislumbram vultos indiscerníveis. O protagonista, capitão Charles Marlow, relembra as sensações contraditórias que a cena lhe incutia: tudo parecia ininteligível, mas, ao mesmo tempo, havia ali um sentido que qualquer homem poderia entender. “A mente de um homem é capaz de qualquer coisa — porque tudo está nela, todo o passado e também todo o futuro”, ponderava. Faltava apenas a tradução correta. Havia ali uma comunicação em curso; e uma mensagem a decifrar.

Marlow escapa, assim, à reação simplista e impressionista ante o desconhecido: reação de recuo, medo, desprezo ou indiferença. O protagonista de Conrad entrevê o sentido: embora não entenda, sabe que é humanamente inteligível; e que lhe falta apenas a chave, tradução. Vê-se, talvez, na situação de quem tenta interpretar um texto remoto — seja no espaço, seja no tempo, seja culturalmente — com escassos instrumentos à mão. Difícil, certamente, mas não impossível.

A possibilidade de tradução de sinais humanos exteriores, defendida por Marlow, contrasta com a barreira intransponível que outro personagem, em conversa com o protagonista, pressente a respeito da transmissão das sensações íntimas de cada um: “Não, é impossível; é impossível transmitir a sensação vívida de qualquer época da existência de uma pessoa — aquilo que constitui sua verdade, seu significado — sua essência sutil e penetrante. É impossível. Vivemos como sonhamos — sozinhos”.

Logo adiante o próprio Marlow, agora só, raciocina no mesmo sentido, ponderando que a realidade de cada um — a realidade tal como se apresenta para si mesmo, não para os outros — não pode ser fielmente transmitida: filtra-se apenas a aparência, por uma opaca transparência, e por ela o observador externo não consegue vislumbrar o que significa de fato.

São dois casos extremos de tradução, ambos complexos, nenhum deles impossível. É fácil concordar com a opinião de Marlow sobre o primeiro caso — a difícil mas factível comunicação humana; mas não é necessário concordar com ele sobre o segundo. Pois mesmo neste caso a tradução é possível, ainda que imperfeita. A realidade íntima é substância de difícil apreensão, sem dúvida; mas tampouco há dúvida de que sua tradução é regularmente operada — e, por que não?, com razoável êxito — tanto pelo próprio indivíduo quanto por terceiros. A literatura decorre daí, em especial a grande literatura. Inclusive a de Joseph Conrad.

Para concluir, uma passagem que sintetiza essa notável possibilidade e que, de certa forma, contradiz a concepção do protagonista sobre a inviabilidade da expressão da realidade individual íntima. Pondera Marlow sobre as dificuldades de comunicação com os nativos: “O que havia ali afinal? Alegria, medo, aflição, devoção, bravura, raiva — quem saberia dizer? — senão verdade — verdade despida do manto do tempo”. É a melhor tradução da realidade.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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